Goma arábica!

É só mesmo por uma questão de superstição: antes que anoiteça e se entre na última noite do ano civil do calendário gregoriano vim aqui. Este é o dia de São Silvestre, em que se joga fora o velho e se vaticina o novo. Oxalá assim seja e esta maleita incógnita se vá. À falta de confiança na Medicina e de optimismo na cura fui-me hoje ao Lunário Perpétuo. E acho que vi lá o diagnóstico e a cura.
Devo ter pleuriz agudo: dôr viva em um dos lados do peito, «que aumenta na inspiração do ar, nos esforços da tosse, nos movimentos do corpo; respiração difícil, tosse seca com pouca expectoração, que é mucosa, pulso frequente».
Agora o difícil é o tratamento: «observe-se dieta rigorosa, deitar o doente na cama, aplicar-lhe oito ou dez bichas ou duas ventosas sarjadas sobre o lugar dorido se o pulso é pouco desenvolvido; se houver grande febre, dê-se uma sangria ao doente proporcionada às forças dele. Depois da extracção do sangue por qualquer dos meios indicados, deita-se-lhe um cáustico».
Bom: ante 8-10 bichas, duas ventosas sarjadas, uma sangria proporcionada e um cáustico a rematar, acho que já me sinto melhorzinho. Muito melhorzinho mesmo!
Ah! Segundo o Lunário também ajuda se tomar xarope de goma-arábica. Antigamente fazia-se cola com isso, peganhenta, daquela barata que se usava nos escritórios modestos e nas estações de correios, como a de Coimbra velha, ali com um pincel quase careca, preso por uma corrente para não o gamarem!
Talvez seja a minha cura definitiva: colo-me à vida e não a largo mais! Mais do que a longevidade, é a eternidade garantida...

Haja saúde!

* Encontrei-a, vinha de um médico, atormentado com o descobrir afinal que doença é esta que me roubou as energias e a vontade de as recuperar: era a biografia do jesuíta Padre Vaz Pinto [A Janela do Ocaso].

O Céu e a Terra

* Foi hoje em Sintra, na Volta do Duche, num recanto de uma curva, antes de se chegar à estação. Aberta em dia de Natal, uma livraria-alfarrabista [A Janela do Ocaso].

* Há no conto «O Natal Chinês» de Maria Ondina Braga aquele instante em que a filha da senhora Tung asseverava que «o menino Jesus entristecia, em cima da cómoda, por causa da deusa na gaveta»... [Maria Ondina Braga].

A todos, um Bom Natal!

A todos aquele que se interessam por mim e a quem eu tantas vezes não escrevo, nem sequer falo; aos que escrevem coisas magníficas em locais que eu devia frequentar sempre e onde tão raramente vou; aos que não perderam ainda a capacidade de se comoverem pelo insignificante e não cultivam o atrevimento obsessivo do eu; aos que se esmeram na arte do lento sentir, esgotados de uma vida vazia de rápido pensar; aos que sabem o segredo de adivinhar e com esse pressentimento navegam ainda pela vida caprichosa; a todos os que naufragram e sabem o que é, perdidas as velas, seguir-se a remar; a quantos, tantos que nem sonho que existem nem dizem que estão, aqueles em nome dos quais e por causa dos quais a vida ainda vale a pena: párias do real, místicos sem religião, sacerdotes do amor mesmo sem acto de amar: um Bom Natal!

A Consoada

* Andamos nesta quadra a desejar indiscriminadamente uns aos outros um Bom Ano e ao mesmo tempo a desejar que certas coisas más não aconteçam... [A Revolta das Palavras].

* Regressei ao primeiro livro da Dulce Cardoso, de há muito deixado a meio, a leitura interrompida... [A Janela do Ocaso]

Afinal, sábado, 23

* Foi ao ler o jornal que me apercebi que, afinal, a consoada é só amanhã. A minha velhota corria o risco de eu lhe aparecer em casa hoje, para a levar a jantar fora, por ser Natal... [A Revolta das Palavras].

* Espero ser recebido um dia...». Acreditem, pois!... [A Janela do Ocaso].

Tento soerguer-me!

* Gesticulando, o gesto a ajudar à compreensão, expliquei que a viagem era rumo ao infinito, porque o tempo é circular.... [Geometria do Abismo].

* Por esta altura havia na cidade a azáfama formigueira por causa de embrulhos, laços e prendas, ceias, almoços e visitas forçadas... [A Janela do Ocaso].

Logo

Para os que são leitores amigos e notam a ausência, é só uma palavra a justificar-me. Volto a escrever logo. «Logo», no sentido português do «mais tarde», não naquele modo brasileiro de falar em que o «estou indo logo», quer dizer «estou indo já».

Paz na terra

Desta vez só mesmo para dizer que me passei atestado de doença. Tenho uma profissão magnífica, daquelas em que, mesmo doente, se tem que trabalhar. Recomendá-la-ia aos inimigos se os tivesse, mas não os tenho. Ao fim de cinquenta sete anos de vida poucas são as pessoas com que cortei definitivamente relações. No fundo são duas apenas aquelas a quem não falo. Uma delas cruzou-se comigo um dia destes no jardim aqui em frente de casa. Trazia, feliz, uma criança pela mão, se calhar por isso sorriu-me, cansado de estar zangado. Eu indiferente já a essa zanga disse-lhe «olá». Estamos velhos, talvez, como se a querer morrer em paz na terra, descredentes do céu e esgotados de inferno. Ou então, não sei. Talvez seja isso: não sei.

Trabalho de vedor

* Voltei no dia seguinte a Lisboa, onde estou este domingo, entre a gripe e o desejo de a ter, revendo provas, o livro por acabar... [A Revolta das Palavras].

* Estou este fim de semana a fechá-lo, revendo provas de autor, articulando com o «cartoonista» a versão definitiva das pranchas... [O Mundo das Sombras].

Finalmente a alegria de uma gripe!

* A livraria era um labirinto de acasos. Encontrar um livro um exercício de persistência, olhos atentos, em cada recanto, uma surpresa... [A Posta Restante].

* A CP permite que se comprem os bilhetes de comboio através do multibanco... [A Revolta das Palavras].

* Um pai cumpre-se quando um filho segue o seu caminho. Foi sempre assim e assim será... [A Posta Restante]

Duzentos e um anos

* António Gedeão foi um poeta precoce aos cinco anos, que só recuperou o dom notável da escrita pela meia idade. Aos oitenta iniciou um diário, fechando-o dez anos mais tarde, após mais de mil e cem páginas, em 35 linhas, com um espaço em branco no final para a data que fosse a da sua morte... [A Janela do Ocaso].

* O DN de hoje traz como manchete que «Portugal é campeão europeu de cortes na função pública». Mais abaixo o título é «juízes perdem liberdade para integrar órgãos do futebol»... [A Revolta das Palavras].

O mundo dos sem companhia

Irene Lisboa viveu a sua solidão num quarto na Rua de São Bernardo, em Lisboa. Num livro dedicado a algumas «Mulheres Escritoras», Maria Ondina Braga, da mesma família dos desesperados, párias dos afectos, cita-a... [Maria Ondina Braga].

Restaurado

* A proletarização da advocacia é isto mesmo. Como se chegou aqui e como se sairá daqui? Não sei... [Patologia Social].