O imenso batuque
Tinha estudos garantidos e gratuitos no Colégio do meu padrinho. Ele era Advogado e eu era apenas o filho do solicitador. Aos olhos de um garoto, e nunca deixei de o ser até deixar o local onde nasci, estávamos em degraus diferentes da escadaria social. Ele e sua família, filhos incluídos, e todos nós em casa.
Talvez nada disso estivesse certo ou fosse sequer assim, mas era a minha verdade, sobretudo quando os visitava, respeitoso, e sobretudo quando o «Doutor Terêncio» me olhava com olhos bondosos e eu o sentia como se pai fosse, ou talvez mais. Teria tido orgulho em saber que eu daria em Advogado e soube-o pelo pior modo possível e sobretudo o mais doloroso. Jurei silêncio sobre isso, ao jurar a ética da profissão que tenho.
Terêncio Africano Lopes da Silva. Falavam latim à mesa na casa de seus pais, em Cabo Verde ou era a lenda que me chegava quando ouvia falar, calado, os meus pais, sobre essa outra família. Educaram-me a não interromper os mais velhos. Não pelo que diziam, mas por serem mais velhos. Por isso calado ouvia e por isso consegui recordar. Só não fixa quem não ouve.
Hoje está morto. Confiscaram-lhe o escritório com a independência de Angola e com isso os Tratados de Direito Civil francês do Josserand, de que fazia gáudio, entre os compêndios de legislação colonial. Disse-me um dia que o empregado, dactilógrafo que matraqueava a máquina de escrever como quem tocasse marimbas, tal o sangue negro a saltar-lhe nas veias, o "Gafanhoto", dera, com aquela literatura jurídica gaulesa a ajudar, em defensor popular.
Verdade ou ironia, era a voz saudosa da raiva de tudo ter perdido, incluindo a profissão. Não há pior tragédia para um advogado que a decadência da inutilidade.
Um dia, tentando explicar-me o que era ser advogado, lembrou as fomes em Cabo Verde, que o livro "Chiquinho" do Baltazar Lopes tão bem retrata. E como davam umas moedas a uns garotos para que, percutindo um pau numa lata, afugentassem com o ruído, as aves que roubavam o grão tão falho às bocas dos homens. E «meu filho», acrescentava, «é isto ser-se advogado, às vezes só temos uma lata e só temos um pau, e batemos muitas vezes, tantas vezes, imensas vezes com aquele pau naquela lata, para que pareçam muitas latas e muitos paus».
Um imenso batuque começou na minha vida desde então, a defesa do possível a tornar-me a vida impossível.