Ecos da Via Sacra
Já se percebeu que esta narrativa não segue nenhuma ordem cronológica, mas a do fluir dos sentimentos. Não é uma biografia, mas um passeio pelo interior de uma vida.
Com o início da guerra, em 1961, percebo hoje em que medida a minha família se dividiu em duas partes. A minha família eram em casa o pai e a mãe. Ele nascera em 1898, fora para África com vinte e poucos anos, como quem se exila voluntariamente, primeiro para São Tomé, onde o seu pai falecera, depois para Cabinda, enfim para Malanje, onde nasci. África era já a sua terra de adopção. Ela, nascida em 1922, fora para Angola para acompanhar os pais, forçada, e sentia-o como um degredo. O regresso à Metrópole foi uma libertação, sem imaginar que viria a ser um aprisionamento.
Viemos morar para Viseu. Lugar para mim desconhecido, terra natal de meu pai, sobrinho neto do Cónego Barreiros, que lhe dera, pois que órfão, estudos gratuitos no Seminário Colégio da Via Sacra, que fundara em 1908. Ali meu pai conheceu e foi condiscípulo de António de Oliveira Salazar. Contou-me quantas vezes o vira, depois de um dia de trabalho como prefeito do Colégio, a retirar-se, para estudar, tirando cuidadosamente as meias e arregaçando as calças, para, em pleno Inverno, meter os pés numa bacia de água gelada e assim não adormecer. Alguém me trouxe há algo tempo um recorte do jornal "Ecos da Via Sacra" em que a escola agradecia «ao senhor Salazar» o que «tem feito pelos nossos rapazes».
Ante o que ouvi em casa e ao ler o jornal uma pessoa entende como tudo o que é nasce afinal do nada.
Ao passar há algum tempo por Fundo de Vila, em Penalva do Castelo (Castendo), concelho de Mangualde, e ao ver tantas ruas com o nome de Barreiros, senti como que a humildade de ser apenas a actualidade temporária de um nome que me antecedeu e que lego aos que me sucederem para que esse nada possa ser no fim tudo quanto há.
José Barreiros Pina do Amaral, filho de José de Pina e de Maria do Amaral. Faleceu tinha eu vinte anos, tinha-me morrido, porém, uns anos antes, porque a vida não é o tempo da existência mas a da essência do que se vive.