Quare?

Eu era apenas um miúdo, imaturo, arrancado a Angola onde vivera em clausura e quase sem amigos, excepção tristonha àquele mundo de porta aberta que caracterizava a vivência dos trópicos. Fora parar a Viseu porque era dali a família do meu pai, que eu não conhecia e que ele mal reconhecia, tendo emigrado para África aos vinte anos e regressado à Metrópole quarenta anos depois. Além disso vínhamos, a minha mãe e eu, com fama de "africanistas", forma de de supor no meio que seríamos endinheirados através da exploração negreira. Perdido numa cidade que não era minha, feito cavaleiro andante de sua mãe, um rapazinho de dezasseis anos chegava enfim ao Liceu Nacional de Viseu, depois da peregrinação pelo Colégio de Santo Agostinho.
Que sabia eu do mundo que por ali habitava, discreto, subterrâneo, e mesmo o da cultura oficial? Alguém me conseguiu fazer compreender a importância do Eugénio Aresta e do Augusto Saraiva na Filosofia? Do Simões Gomes na Cultura Clássica? Não tinha quem, com uma única excepção chamada Luís de Miranda Rocha. Falarei dele um dia e das saudades que me roem a alma incompleta pela sua prematura morte.
Pressenti, sim, naquele professor de Literatura, alguém diferente. Talvez porque mais novo do que o habitual, sobretudo porque mais arrojado do que se esperava. 
Arriscou dizer-nos, sem que eu entendesse bem, que não estava autorizado  pelo Reitor a recomendar a História da Literatura do Óscar Lopes e do António José Saraiva mas que era a melhor a que existia. Dava aulas como quem conversa com amigos. Arriscou, sobretudo, pegar naqueles adolescentes tão diferenciados como éramos e fazer-nos ler, mesmo os mais obtusos. Pela sua mão descobri o que era a Biblioteca do Liceu. Por causa dele passei a não perder a paragem da carrinha da Fundação Gulbenkian quando, ela como Biblioteca Itinerante, me trazia aquele mundo por haver.
Um dia, numa aula, surpreendi-o descobrindo que havia mais remos do que remadores num dos autos da barca de Gil Vicente, não sei dali retirando que peregrina conclusão. Líamos a peça representando-a. 
No final foi ele que me surpreendeu a mim. Aos poucos vim a saber o seu genial valor, a sua bondade, o seu empenho. Tarde demais, porém. 
Morreu jovem. Hoje olho para mim e para esse tempo perdido e para aquilo de que não fui capaz e sinto uma vergonha imensa por já não ser possível bastar-me com o arrependimento de uma culpa de que nem tenho com quem repartir os remorsos. 
Esta noite o Eduardo Pinto trouxe-me uma grata memória na forma de um blog que o refere e uma fotografia. Está aqui. Olho para a imagem e para a clareira que significa a minha ausência quanto a tudo isso. Na altura eu era apenas um miúdo desterrado em Abravezes, sem eira nem beira, formando-me a esmo. Anos depois tudo isso pesa como uma acusação. O que faz de nós a inconsciência.
Alberto Osório Mateus, meu professor. Numa aula marcou-me como trabalho escrever uma carta como se fosse o Francisco Manuel de Melo. Teria de ter o estilo, o vocabulário e, não mais o esqueci, terminar com a sacramental fórmula: «Quare? [Porquê?]». 
Eis a pergunta da minha agonia esta noite, olhando para o tempo ido e para o tempo perdido: porquê? Porquê?

O Cónego Barreiros

A fotografia tem no verso uma legenda: «Ao primo José Barreiros Pina do Amaral, como prova de estima e lembrança da sua passagem pelo meu Colégio. Colégio da Via Sacra 14-7-52 Pe. António Barreiros».
O destinatário foi o meu pai, que usava o nome, como se à espanhola, com o designativo materno no final antecedido pelo do lado paterno. 
Órfão, o Cónego Barreiros deu-lhe estudos gratuitos no que foi uma referência estudantil em Viseu: o Seminário-Colégio da Via Sacra. Ali conviveu com António de Oliveira Salazar, então prefeito. Com a diferença: este dedicava-se, férreo, ao estudo, chegando a ponto de em pleno Inverno, depois de uma jornada de trabalho, descalçar-se para que os pés numa bacia de água gelada o impedissem de adormecer; o meu pai queria namorar e vida solta. Partiria para São Tomé, dali para Cabinda, enfim em Malanje, onde eu nasci em 1949. Quando a foto chegou até nós eu teria três anos. Fui hoje ao seu encontro.

O espírito do lugar

Estudei aqui, vindo do "Colégio do Terêncio", meu padrinho, como contei. Era um seminário e também um colégio. Estudavam no colégio os filhos dos mais afortunados e eu tive a oportunidade de naquela altura ser filho numa família que afortunara. Começaram do nada. E ficámos sem nada. No começo quando eu não existia minha mãe chegou a fazer ajour "para fora", porque o infortúnio abateu-se sobre a nossa casa. Mais tarde, comigo já na Faculdade, ter-se-ia que agarrar a modestíssimos empregos para poder haver comida em casa. Pelo meio tivemos do mundo as coisas boas que o mundo tem. 
Talvez por isso tenha ficado como marca o misticismo destes missionários, tão longe do execrável cura que mais tarde conheceria e que da Igreja afugenta porque da Igreja é o mau exemplo, a fraternidade destes missionários, a austeridade moral destes missionários. Um dia surgi nas aulas de pulseira de ouro e anel. Prendas de avó. E fio ao pescoço. Olhando-me com ar severo, o Padre Ferreira lançou-me na cara: «vens assim para apoucar os que não têm?».
Nunca mais esqueci. Nunca mais uma peça de ouro. Agora a aliança apenas, símbolo da dedicação.
Se o mundo se divide, de um lado os materialistas, eu estou além. Mesmo dos materialistas históricos e dos dialécticos. Devo-o a este começo, a esta lição, a este lugar.