Um tempo já sem espaço


Tinha cinquenta anos quando nasci. Eu era o menino dos seus olhos, filho único do casamento com minha Mãe. 
As vicissitudes da vida fizeram com que nos perdêssemos um do outro. Quando, adolescente, precisa vadele, estava ausente. Depois, ao entrar na Faculdade, regressou, sombra do que tinha sido, minado por uma doença imperscrutável que lhe seria fatal.
Ao morrer estava só, na cama do Hospital de São José. Minha Mãe e eu revezávamos-nos, para o visitar; coube ser meu o dia em que, ao chegar à enfermaria, a sua cama estava imaculadamente composta. O vazio fez-me compreender tudo, o olhar condoído do doente da cama ao lado, tudo aceitar. Vinte anos de juventude esvaíram-se naquele instante. 
Hesitei se deveria vir aqui deixar esta lembrança de presença, como se a fazê-lo regressar.
O que vivi fez perdoar. Todos os difíceis momentos que vivemos, solidão, melancolia, a penúria, tudo esquece, mesmo quando molda o ser e se torna parte daquilo em que nos tornamos.
Chamava-se José Barreiros Pina do Amaral, porque usava o nome em ordem inversa. Para mim, a segunda parte do nome, apelido do seu lado materno, já não passou. 
Oriundo  de Viseu, viveu em São Tomé, em Cabinda, em Luanda, enfim em Malanje. Em 1947 conheceu uma rapariga vinte cinco mais nova do que ele. Desse improvável encontro nasci eu para uma improvável vida. 
Homem de vida errática, vogou entre a aventura e o improviso. Escreveu crónicas no Diário de Luanda, no Angola Norte, foi um dos que fundou o Rádio Clube de Malanje. Nada sobeja do que ficou nos jornais, apenas uma pálida memória do que se perdeu pelas ondas hertzianas. Que importa isso, porém, tão precário, discutível. Foi solicitador. Menos memória ficou. Apenas os livros, que ainda guardo junto aos meus, todos sem saber que destino lhes resta, folhas envelhecidas de um tempo para o qual não haverá no futuro espaço sequer.