"A Partilha em Vida", um começo de vida.

Eu tinha então 23 anos. E frequentava, como casa minha, a Biblioteca da nossa Ordem. Havia sido aluno sofrível, mas, agora no estágio, conhecia outra dimensão do Direito, a humana, povoada de almas para quem ele era parte natural da sua vivência familiar.
Tudo vem hoje à memória e nela há, a pesar, uma dívida a pagar.
Eu tinha 23 anos e com eles vontade de iniciar vida, sem saber o que esta, adversa, me reservaria. Mas tinha a ilusão da esperança. Corria então o ano de 1972.
Nas minhas deambulações bibliotecárias, folheando, ao acaso, ia formando o meu conhecimento não das regras do Direito, mas das pessoas da Justiça, suas histórias.
Um dia, nem sei graças a que acaso, vivendo errático, soube que havia um prémio para o melhor estudo jurídico de quem a ele se candidatasse, instituído pelo Bastonário Barbosa de Magalhães.
Eu tinha 23 anos de atrevimento e com ele o arrojo de pensar que, qualquer que fosse o tema, não diria não a escrevê-lo e nem esmoreci quando soube estar então a concurso algo tão inesperado como “A partilha em vida no Código Civil”.
E tinha vontade impetuosa de iniciar vida, e irrompeu, assim, aquela nesga de oportunidade, porque o prémio, soube logo, acumulados o de dois anos, era de 50 contos e com isso conseguiria comprar os tarecos necessários a mobilar casa e ainda algum me sobraria.
Em suma, tudo reunia, acaso e a necessidade. Havia, porém, um senão: o prazo estava a terminar.
Foi com tais severas limitações, alguns meses apenas pela frente e um tema totalmente desconhecido, que me decidi.
A literatura portuguesa sobre a matéria era escassa, o instituto era novo, trazido para o Direito Civil Português através do Código de 1966, que tinha poucos anos ainda de vigência. Jurisprudência, que me lembre, pouca.
Havia que cavar no Direito estrangeiro e salvou-me o francês, onde me cruzei com uma figura conhecida como “partage d’ascendant”. E dali voguei pelo espanhol, onde havia regras curiosas sobre sucessões “especiais”, que tentavam evitar que o egoísmo rapace de herdeiros, junto ao igualitarismo que a legislação burguesa inaugurara, dissipasse a herdade e a fábrica, a universalidade que era sustentáculo do poder da velha família, mas também sustento meio de produção dos desprovidos que nela encontravam ganha pão.
Juntando o desconexo, antecipei o que seria depois curiosidade pelo morgadio, o sistema da propriedade e da herança vincular, sobre o qual tenho hoje – relíquia – a obra do famoso “Lobão”, de seu nome Manuel de Almeida e Sousa, nascido em 1877, que, querendo dedicar-se à Advocacia, fez na povoação de Alcouce, freguesia de Lobão da Beira, concelho de Tondela, residência e lugar de estágio com o Advogado Estanislau Lopes, este esquecido, aquele lendário gigante na História do Direito, imensa escrita: o Tratado Prático dos Morgados, editado em 1807.
Coube ao Dr. Mário Raposo ser relator do concurso. Amável, não poupou alguma severidade encorajadora para aquele ousado candidato em pétreo tema: “poucos juristas, sobretudo os da nova geração, sobreviveriam à sua inelutável aridez”, escreveu a 29 de março de 1974.
O Prémio Alves de Sá, eis o que eu almejava, tinha sido ganho, em anos anteriores, pelo prestigiado Advogado Humberto Pereira Diniz Lopes, militante de causas cívicas, várias vezes preso político, figura de referência no mundo da cultura.
Foi-me concedido numa sessão discreta no Gabinete do Bastonário Ângelo de Almeida Ribeiro.
Tentando, com timidez, explicar-me quanto à aventura que corria o risco de passar por alto empenhamento científico, terei balbuciado então que tinham sido 50 contos o vil móbil. Eu tinha 23 anos de ânsias de montar arraiais na Advocacia.
Ao ter apresentado, outro dia, o livro que a historiadora Maria João Figueiroa Rego escreveu sobre os Bastonários, ele ali estava, em gravura, enfim, o meu benfeitor: Alves de Sá. Nunca lhe agradeci o prémio. Aqui estou, mão no peito: obrigado, Colega e meu Amigo! Foi consigo que tudo começou.

[texto publicado no número deste mês do Boletim da Ordem dos Advogados]