A cibernética e o Direito

No passado dia 25, dia do Advogado Europeu, a gentileza de ser sido convidado para intervir numa conferência sobre a advocacia digital, levou-me aos confins da memória. A imagem que encima este post é de uma comunicação que, era ainda estagiário, apresentei, em 1972, ao 1º Congresso dos Advogados Portugueses.
Tudo começara três anos anos antes. Eu tinha vinte anos. Era tempo de vadiagem pelos corredores da Faculdade de Direito, estudo apenas o necessário, no mais, errância, militância na Associação de Estudantes e fantasia. 
Um dia, na Biblioteca, lendo o que não tinha obrigatoriamente de ler caiu-me nas mãos um número da Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto. E nela um artigo de um professor de Milão, cujo nome era para mim desconhecido: Mario Losano. E um artigo seu sobre a Giuscibernetica.
Não sei com que rapidez lhe escrevi uma carta. E com que brevidade me respondeu e me enviou, gentilmente, o seu pequeno grande livro, intitulado Giuscibernetica, Macchine e modelli cibernetici nel Diritto

Devorei-o, sublinhando-o, apetecendo-me sublinhar tudo. Era para mim uma revelação. Tratava, sim, também da aplicação dos computadores ao Direito, o que já por si, nesse ano de 1969, era uma revelação. Mas a obra defrontava-se com outros territórios que eram tão interessantes quanto mobilizadores. Abria uma crítica à jurimetria, essa disciplina que, partindo do sistema dos precedentes judiciários como fonte de Direito, ensaiava uma previsão do comportamento judicial, pela extrapolação a partir de bases de dados formadas a partir de critérios expressos pelo tribunal em casos semelhantes.
Não se ficava, porém, por aí. Abria caminho, ao reflectir sobre a aproximação à lógica jurídica, a formal e a dialéctica e a partir daí a eventual algoritmização do pensamento jurídico, e o cálculo das proposições normativas.
Tudo isso, nesse tempo, fazia sentido.
Eu estava já, por outra via, embrenhado em tal território cultural. Graças ao amigo apoio de Luís Moniz Pereira, então estudante do Instituto Superior Técnico, havia sido acolhido num grupo que se intitulava Centro de Estudos de Cibernética, onde confluíam, sob a sua orientação e a de Luís Fernando Monteiro, em lógica multidisciplinar, contributos de vária índole. Lembro-lhe do Vítor Manuel de Oliveira Jorge, vindo da arqueologia, a Maria Helena Mira Mateus, do Centro de Estudos de Linguística Teórica. Tinha-me envolvido no estudos da Teoria Geral dos Sistemas e na Teoria da Comunicação. E tudo isso era como se um mundo só.
Lia então o absolutamente inesperado para a idade e, confesso, lamento profundamente que tudo isso seja hoje um passado irrecuperável.
Comecei pela obra de Norbert Wiener, profética porque de 1948, emocionado pela convergência em modelos isomórficos dos princípios de funcionamento dos vários sistemas, dos naturais, aos sociais, aos das máquinas criadas pelo homem.
Conceitos como retroalimentação, servo-mecanismos, a questão da entropia decorrente da segunda lei da termodinâmica, passaram a fazer parte das minha reflexões, enquanto mastigava o Direito ensinado pelo método positivista e hermenêutico que era assim que se usava na escola que eu frequentava. É que havia que passar nos exames.
Curiosamente, foi o seu opúsculo Deus, Golem e Companhia, que me impressionou, por ser um estudo sobre a questão teológica do Criador e da criatura, afinal, com dezenas de anos de avanço, a questão crucial da inteligência artificial. Enfrentando o problema, que von Neumann havia teorizado, a dos jogos de teoria perfeita - em que o jogador aprende sempre o melhor modo de vencer e, aplicando o método, ganha seguramente - Wiener prevenia: «os idólatras do mecânico têm a ilusão frequente de pensar que um mundo altamente automatizado exigiria menos do engenho humano do que o mundo actual e retiraria do homem a penosa necessidade de reflexão». E como isso fazia sentido e prevenia para ilusões que se tornariam funestas.
Rendido à fantasia do determinismo newtoniano, do mundo como um relógio suíço em que o Direito marcaria a hora certa, progredi pela tentativa - impossível ante a minha reduzida inteligência nesse sector - pelo cálculo de normas, e nomeadamente pela analogia possível entre os preceitos da lógica alética - em que se encontrava o necessário, o possível, o contingente e o impossível - e as da lógica deôntica - em que resultava o obrigatório, o permitido, o indiferente e o proibido, analogia que havia sido desenvolvida pelo pensamento do finlandês von Wright e pelo polaco Georges Kalinowski, com quem me cruzaria depois num colóquio em Palma de Maiorca em 1982. 
Foi aí que o matemático Miguel Sánchez-Mazas, filósofo e um introdutor da filosofia analítica da linguagem em Espanha me trouxe o pensamento de Leibnitz e com ele a redução dos conceitos a representações aritméticas. 
A minha ignorância matemática tornou a sua obra ilegível, mas não a apreensão do seu fundamento.
No fundo nela expunha-se a possibilidade de redução proposicional das asserções jurídicas a fórmulas que, sujeitas a cálculo, demonstrariam a sua racionalidade e, por isso, a sua congruência, evidenciando as que não fossem validadas por esta fórmula.
Personalidade arrebatada, o autor, que teria de se exilar fora de Espanha em 1956 e só voltaria ao seu País basco em 1982, teve a subida gentileza que me encorajar, com um autógrafo em que colocava a sua simplicidade, ele um génio em movimento, eu um atrevido aprendiz. 
Difícil será evitar a emoção com que recordo tudo isto e com que, em intervenção improvisada, relembrei todo esse meu passado, que as contingências de vida aniquilaram.
Talvez tivesse sido um erro, ter seguido por aquele caminho filosófico. Sinto-o hoje, ante o modo como vejo o Direito desenrolar-se, expresso pela retórica, servindo como resultado ante a melhor forma de argumentar, a "verità effetuale delle cose" a ser, tal como vi ser com inteligência ser expresso por Nicolau Maquiavel, afinal o critério de aferição do que se tem por legítimo e justo porque legal: certo e verdadeiro e por isso válido é, assim tantos pensam, o que se torna congruente com o efeito que se pretende: ou seja, trata-se de uma legitimação do apriori, a decisão prévia à sua fundamentação.
De tudo isto, e de tanto que poderia dizer aqui, ficam, como presença, os computadores que usei, processadores de texto, instrumentos de gestão, e hoje a máquina de computação universal. Sub-produtos, afinal, porque meros artefactos. 
Charles Babbage derreteu uma fortuna para tentar a sua construção. Trabalhando em Bletchley Park para os serviços secretos britânicos, para que fosse descodificado o tráfego de comunicações criptografadas da máquina alemã Enigma, Alan Turing contribuiu decisivamente para a construção do primeiro computador programável, o Colossus
Fundamentais como tecnologia, assim não fossem decisivas as ideias. Mesmo as que se revelam uma falsa partida.
Por isso aqui fica o que foi o meu primeiro: écran monocromático, disquetes de oito polegadas, moles, 128K de memória RAM. Foi o primeiro passo de uma longa viagem. Comprei-o em 1983. Nesse ano levei  cabo na Ordem dos Advogados um evento durante o qual se fez a primeira ligação, através de um modem acústico, a uma base de dados jurídicos, o CREDOC belga. O «AH!» de A surpresa de quantos encheram o Salão Nobre da Ordem ao verem, em resposta ao query,  as primeiras listagens de sentenças sobre o tema inquirido, no caso o divórcio, ainda hoje o guardo como uma das mais gratas recordações. Valeu a pena!