A feliz e ansiosa angústia que é viver


Podem fazer-se balanços de vida em qualquer idade. Fazem-se por vezes quando surgem no devir do tempo números redondos, como cinquenta anos, pela ilusão de que se viveu metade do disponível mas pouquíssimos são os que chegam à centena de anos de sobrevivência.
Inicio esta madrugada sessenta e seis anos de vida. Não tenho nenhum balanço a fazer do tempo certo já vivido, sim um projecto para o incerto tempo que haverá para viver.
Quero ser feliz, felicidade que nasça do que me puder ainda oferecer de bom e daquilo que de melhor conseguir partilhar com todos os demais: a sensação de paz por haver quem encontre por mim razão para sorrir.
Quero, além disso, dar sentido à existência, unindo pontas soltas que foram ficando do que ensaiei sem terminar, quase me esgotando sempre com excertos apenas do que imaginei possível: o sentimento de completude por haver achado modo de me reconciliar, inteiro, com tudo quanto é e está e por onde me joguei em iniciativa e esperança.
Quero, enfim, preparar-me, com dignidade, para qualquer percalço que me tolha o passo, interrompendo-me ou suspendendo-me a possibilidade: a percepção da finitude e da precariedade, não me julgar mais do que um cruzamento de improváveis acasos em que a vida gerou vida para que a vida continuasse possível.
Poderia dizer que de mim ficaram três filhos: mas nunca um filho é a continuação de seus pais, sim um ser existente por si e em si. Somos a origem da sua existência não a continuação da mesma através deles.
Poderia julgar que as obras a que dei azo valem o esforço que custaram: mas houve sempre mais esforço do que resultado e o que valerem tais efeitos sejam outros a dizê-lo, a seu tempo, não eu porque ainda esgoto o remanescente tempo.
Assim, nada digo e nada julgo. Seguirei o caminho que tracei, mesmo que não seja pelas avenidas que são trajecto; todas as vezes que me perder, tentarei retomar o passo. Estou no caminho certo.
Lamento o sofrimento, a dor, a desilusão, aquilo em que me inutilizei. Mas o que é viver se não errar? Felicito as circunstâncias que me trouxeram o mal, tal como festejo as que me fizeram encontrar o bem. São a prova de que não fugi a entregar-me, mesmo sabendo o que era susceptível.
Inicio esta madrugada, afinal, com redobrado ânimo, a continuação do que me foi possível. Olho carinhosamente a vida, a feliz e ansiosa angústia que é viver. E sorrio, confiante e grato.