Empurrando o carro de tudo

Ao ter recomeçado várias vezes a partir quase de nada, também eu vivi a ilusão de repetir a fantasia de voltar a ter vinte anos, várias vezes vinte anos.
Os aniversários são também essa oportunidade para, anualmente, renovando a esperança, prometermos mutação de vida. E o primeiro de Janeiro, tal como o retorno das férias de Verão.
É erro, porque a mudança faz-se, assim se queira, em dia incerto e hora imprópria, porque a mudança irremediável é a que vem ao nosso encontro.
O ser humano adapta-se mesmo quando constrói, assim a Natureza. A arrogância da Humanidade gera a tragédia e ela aí está numa das suas manifestações. Outras vieram, mais surgirão. O Cosmos agrega-se por implosão.
Faço hoje 71 anos. Para as seguradoras, estou amortizado, para os serviços de saúde, sou um caso de risco. E no entanto continuo em frente, a cabeça volteando de iniciativas, o coração inflamado de sentimentos.
Estou em paz com os meus e sinto amizade à minha volta.
Por não se ir almoçar fora e chegarem-me os filhos pelo telefone, não tenho com isso pena por mim.
Vive-se uma tal dor de alma ante o que se passa que torna excessiva a alegria própria. 
O acaso permitiu-me chegar aqui. A vida ensinou-me que se empurra o carro de tudo, mesmo quando é pela estrada do nada. O perpétuo movimento é a vida a fazer-se, desfazendo-se.
Fico feliz e grato pela oportunidade de ainda estar. Seria injusto não agradecendo a quantos têm partilhado presença, sentimentos, ajuda.
Cantem, pois, as nossas almas!