A incógnita da sobrevivência
Ontem, formigando de várias origens, reuni-mo-nos ao jantar. O traço comum daquele carreiro humano, a cidade onde, jovens, encontrámos raízes, pelo acaso do nascimento, pela força da hereditariedade, pelo afecto do fugaz: Viseu.
A circunstância permitiu que descobríssemos a semelhança das idades, todos para além dos sessenta anos. Inevitável que alguém tivesse pensado, naquela nostalgia silenciosa dos que se vencem sem luta, que é a recta final da nossa vida, tal como a conhecemos com esta morfologia humana, mesmo quando se desdobra a vida, vivendo simultaneamente várias, a das obrigações, a das vocações, a vida apaixonada e a do desespero, a da pragmática e a ilusão.
Seres unidimensionais e evidentes, complexos e indecifráveis, pseudónimos ou figuras em que à heteronomia se substitui um desdobramento de personalidade, o génio devorado pela patologia, ali estávamos. Cantaram-se parabéns.
Tempo de vida, connosco os idos, tempo dos que lembram a quem devem a vida. E assim surgiu: foi durante uma excursão do Liceu à Serra de Estrela. Quis ter a gentileza de dar a mão para que as meninas passasse entre duas lajes que o gelo cobrira de um cristal escorregadio. Passaram, uma, duas, talvez três, até que um pé em falso me jogou para o abismo. Valeu-me uma mão, firme na aflicção, que arriscou ir atrás de mim, sugado pelo peso da união assim improvisada, lançados ravina abaixo, a estatelar-mo-nos, desfeitos, contra afiadas pedras que, como facas, esperavam-nos, e as cortantes calotes gélidas que ensanguentaríamos até que numa pasta informe fossemos sepultados no rio que, longínquo, escorria, grosso, mau, ameaçador.
Chama-se Álvaro. Devo-lhe a vida. Ontem descobri que foi ali que se desenhou a incógnita da minha sobrevivência. Teria uns dezasseis anos. Na altura nem me apercebi de que o tempo pode interromper-se, abrindo o vazio da nossa ausência. Ontem reencontrei-me com a sua insaciável garganta, escarpada, à espera de um momento em que a vida nos não sustenha.