A ânsia de resistir até ao fim


Tinhas 47 anos. Iniciaste esse ano o resto da tua vida, solitária, isolada de tudo e de todos. Envergas o luto recente de viúva.
Ontem um estranho pressentimento fez com que nos despedíssemos, no silêncio, na ausência já de qualquer possibilidade de comunicação outra que a de um olhar, um afago. 
Olhei-te nos olhos. Entardecia. Na ânsia de resistir à sufocação, contemplavas já o infinito. Lutaste até à exaustão.
«Mãe, dorme, dorme descansada», balbuciei, sem jeito, como nunca fomos capazes afinal de saber dizer o que fosse um ao outro das nossas almas.
Juntaste-te esta madrugada aos que antes de nós partiram.
Esta manhã o telefone tocou.

Ernestina

Ao ver-te na rua atravessaria a rua, correndo se necessário, não propriamente para te encontrar, mas evitar chamar-te. Não saberia como fazê-lo. Talvez pelo teu nome próprio. Sim, talvez assim.
Hoje, uma tarde morrinhenta de céu em desânimo, olhavas para um infinito indefinido, deixando-me na agonia de eu poder já não estar sequer ali, esganada por ar, entubada, em espasmos que poderiam ser de dor ou de ânsia de falares, quebrando o silêncio destes últimos anos, afinal de não sufocares que é uma forma horrenda de o mundo nos martirizar e o coração não pára para morrer.
Defendido de luvas e batas contra todas as infecções, como isso importasse já, olhei-te, não sendo capaz de ter lágrimas nem de te chamar pela palavra Mãe. Balbuciei «Ernestina». Carregado de vergonha por mim.Não havia ninguém para nos ouvir. Talvez até Deus dormitasse já.
Esta noite fui buscar-te aos teus dezassete anos. Estás aqui. Não sabias então que rumo levaria a tua vida. Que encontrarias pela paixão um homem mais velho do que o teu próprio pai. Dali nasceria eu e secarias para sempre.Aos meus vinte anos ficámos os dois e uma desilusão.