Um Homem, uma vida
Um Homem não é só aquilo que faz, o que produz, o que possa ficar, o que tem. Um Homem não é apenas o intervalo entre todos os outros, como um interstício no cosmos. É também o que falhou, o que lhe faz falta, a dentição que foi degradando, o enrugar da pele, a falência progressiva de cada um dos pedaços de si que um estranho sopro transcendente une à vida através da Natureza, o ter tido em tempos uma farta cabeleira e a inocência de acreditar no que lhe diziam. E entregar-se.
Hoje é o dia que que se fazem balanços por aí, como no comércio o varejo: conta-se do inventário o que se acumula em armazém e julga-se que são reservas quando é de sobras que se trata, refugo, "monos" que ninguém quis e só o improvável alguém procurará; dia em que se fazem planos, frequentemente a renovação do mesmo plano mais a jura que, desta vez, não será como no ano anterior, nem nos anos anteriores, nem em toda a vida antecedente, o ficar aquém do pensado como fito, ou no exacto ponto primordial em que se pensou mais o nada que equivale a coisa nenhuma e a horror ao já não há.
Vivi e tive Pai e Mãe que já se foram embora daqui. E filhos que tento sejam eles sem mim, que é uma forma de existir sem olhar para trás. E que me tenham no coração e na memória e no mais todo o mundo seja seu.
Tenho uma profissão que é um velho cavalo cansado, já corrido, que todos os dias aparelho à carroça dos deveres tentando transformar casos em causas, mesmo os que são apenas problemas. E vivo disso, como se com o impudor de explorar a mágoa alheia e a miséria humana, mas foi assim que vim encontrar a vida quando percebi como era o meu ganha-pão. E sustento assim pessoas e projectos, mesmo o irrazoável e a mim próprio.
Escrevi uns livros, diversos, de modo a que na imagem pública dos distraídos amáveis, ninguém sabe bem quem sou eu, menos ainda quando despido das Letras, prosaicamente nu. Mas agradeço muito a quantos, com vénias corteses, os aplausos, actor que nunca desilude o seu público, hirto por detrás do pano, esperando que este suba uma vez mais, e se não ofusque pelas ribaltas da precária estreia, nem confunda personagem como intérprete sobretudo daquilo de que é autor e, tantas vezes, o primeiro espantado espectador.
Tive também quem me recebesse nas suas vidas, em nome daquela ideia errática que se chama sentimento, partitura que vai da graça à dor, passando pela ilusão renovada de bem-querer.
Um Homem não é apenas ter-se entregue, sim a lembrança carinhosa de quanto lhe deram. Obrigado, pois, uma das mais belas palavras que conheço para, em íntima litania, me sentir vinculado a dar à existência quanto dela recebi.