A chegada do comboio
Naqueles anos de cinquenta, naquela cidade do planalto, local onde cruzaram pai e mãe e dali resultei eu, havia o ritual do depois de jantar.
Dava-se uma volta pelo jardim, em redondel, os casais aparelhados, com filhos uns havendo filhos, a jurarem amores que dariam filhos mesmo os outros que de amores se ficavam pelas palavras.
Cumprimentavam-se ali mais uma vez, depois de se terem visto, porventura já, naquele dia de que a noite dava agora o cerimonial de um baile e seu salão.
Num dos topos do jardim ficava o Palácio do Comércio, local do Tribunal, no outro o Banco de Angola. Num dos lados desse quadrado solene, símbolo de todo o poder, ei-lo, o Palácio do Governo, no outro a Estação do Caminho de Ferro. E era para aqui que tudo convergia.
O ritual social iniciava-se pelo passeio público, ritmado, o braço dado, a mão dada, o braço por cima do ombro, cada um conforme o seu estado, estatuto ou condição, e prolongava-se pelas paragens intermitentes dos pares em volteio, e os cumprimentos, normalmente de cabeça e andando, ou meia volta de conversa banal e no retorno ao passo, feitas as cortesias, o murmúrio da ratice sobre o vestido daquela, que era o mesmo, ou sobre os sapatos daquele, por engraxar.
Era então a hora de chegada do comboio vindo de Luanda, quatrocentos quilómetros de via férrea por entre pó barroso, que fazia com que se chegasse ao destino como índios peles-vermelhas. Saídos, em formigueiro, ei-los os exaustos viajantes e suas malas, e a aguardá-los os que os aguardavam por ter de ser e os que os esperavam por não terem mais que fazer. Havia a automotora, mas nos labirintos da minha memória perdeu-se-me a hora da chegada.
Com o desembarque, a ratice privada tinha então uma nova oportunidade pública de se exercer, mais ampla agora, mais variada, mais carregada de novidades.
Eram os que tinham ido a Luanda, os que regressavam da Metrópole, os que arribavam pela primeira vez à colónia, funcionários, colonos, desconhecidos, amigos.
Naquela cidade, naquele jardim, naquelas noites eu era um miúdo passeado pela mão de seus pais. Às vezes deixavam-me cabriolar em liberdade, um pouco à frente, guardado à vista. O normal, porém, era nós sermos aquele círculo fechado, do mundo resguardados e ao resto indiferentes.
Entre a austeridade severa de uma mãe e a bonomia animada de um pai, ia-me fazendo gente. Hoje que escrevo guardo ainda o cheiro desse jardim, os canteiros alinhados e o regresso a casa, ensonado de ter convivido com um mundo que viajava.
Dormia então um sono inocente feito de inconsciência. Subterrânea, a guerra, formava-se sobre a dor e os ressentimentos.