Da "Quitanda", assim se chamava o mercado, lembro-me apenas do sino que tocava o meio-dia.
Já a linha do caminho-de-ferro é uma memória vincada que me fica. Passava ao fundo da minha rua, interrompia a minha rua, era o limite além da qual poucos brancos já viviam. Nascia o habitat indígena, o mundo ao qual eu, confinado à casa e à escola, era um estranho sem tê-lo sequer conhecido.
Se eu tivesse tido tempo, as questões ferroviárias, com todo o seu caudal de organização militarizada, de regulamentos e apitos, vigílias nocturnas e altas velocidades, ter-me-iam ocupado o espírito de qualquer forma. Como não sei, todo aquele concerto de homens e metais, de movimento e de espera, teria de ter encontrado em mim um modo qualquer de se expressar. Ficou como memória, como sentimento de nostalgia pelo que poderia ter sido.
De Malange a Luanda eram quatrocentos quilómetros que levavam doze horas numa via reduzida impregnada de pó barroso. Parava-se na Canhoca para almoçar, sopa de feijão a escaldar.
A passagem dos comboios ao fundo da minha rua pressentia-os já, não pelo horário, que julgo nunca terei chegado a saber, mas sim pelo progressivo aproximar-se do "pouca terra" entrecortado com «úaaaa úaaa» com que a máquina anunciava a sua chegada.
Lembro-me do guarda da linha.
Lembro-me da sua fardeta manhosa e esburacada, dólmen de autoridade ferroviária, a bandeira vermelha na mão.
De carapinha branca, o rito digno dos velhos negros, o guarda da linha ocupava o seu imenso tempo livre a fabricar sapatos que recortava de velhos pneus. Antes de eu ter sabido o que eram sapatilhas de ténis, aqueles foram as primeiras que vi fazer pelo homem que mandava passar os comboios.