O casarão
O Colégio pertencia ao meu padrinho, o Dr. Terêncio, de quem já falei aqui. Era um imenso casarão. Ou talvez nem tanto, mas a memória infantil torna sempre maiores os espaços, mais altos os tectos, mais funda a distância.
Curioso o que recordo desse mundo infantil. Não consigo lembrar um nome sequer, salvo o da professora por causa da qual os meus pais me tiraram dali. Como eu não conseguia ler números com muitos zeros, prenúncio do que a vida me reservaria em matéria de incompreensão ante a riqueza económica, lembrou-se de um método em cuja brutalidade confiava: o ensinar-me batendo.
Um dia apareci em casa com o ombro negro de sangue pisado pelas reguadas com as quais se tentara que eu soubesse distinguir os milhares das dezenas de milhares, as centenas de milhares, os milhões e por aí em diante.
A partir daí inscreveram-me no Colégio de São José, que também era Seminário. Um outro mundo abria-se.
Esqueci quase tudo desse mundo primitivo, excepto o mapa de geografia e os intervalos das aulas apenas pelos gelados de leite de que uma vizinha em frente fazia economia doméstica, sorvetes feitos como cubos nas cuvettes do congelador, um palito como base de sustentação. Custariam pouco mais que «uma quinhenta». Eram naquela altura o paraíso na terra no intervalo das tentativas ferozes de suporem que eu tinha inteligência, à pancada.
Encontrei-a esta noite aqui, esbatida, a memória da minha escola primária, o Colégio de Veríssimo Sarmento e com ela o casarão de uma infância quase sem amigos o nascer de uma reclusão interior.