O soldado cadete n.º 153053/70

Rememorando o que foi a infância e a juventude, creio que fui educado militarmente. Em nome da regra segundo a qual «vida de cama, vida de lama», a alvorada lá em casa era pelas sete, quando não era antes. A ideia de ficar a preguiçar durante a manhã, salvo estando doente - e as doenças só existiam quando a febre ultrapassava os 39º - era quase pecaminosa. À noite, depois do recolher, a luz acendia-se às escondidas.
O culto do dever, as horas certas para se estar à mesa, o ter o quarto limpo como uma caserna, marcavam o tom. E, claro, o viver sob inspecção permanente, sob a ameaça da repreensão disciplinar. 
De tal forma assim foi que quando, com o surgir da puberdade ele se soltou, o espírito de liberdade, o território que eu tinha para lhe oferecer foi o da vida solitária. Muito poucos eram os amigos e a irem a minha casa praticamente nenhum. Aprendi a viver na rua. Ao regressar ao aquartelamento fardava-me de solidão.
Um dia o serviço militar obrigatório chamou-me. Fui recenseado e deram-me um número, o 153053/70. Apurado para «todo e qualquer serviço militar».
Esperaram para eu terminar o curso e ainda para fazer o estágio de advocacia, como se a tropa precisasse do meu ser jurídico. Acabaria, porém, em Armas Pesadas de Infantaria, apesar do desconcerto da minha magreza.
Quando entrei na Porta de Armas já tinha tido o meu tempo doméstico de vida castrense.
A foto ilustra o momento grave em que numa imensa fila, com o número ao pescoço, quais presidiários, éramos fotografados em manada. Depois recortavam um a um, daqueles corpos, o que individualizava o mancebo, a carne para canhão. Foi no Quartel em Mafra, era Janeiro e fazia frio. Foi ali que aprendi a primeira regra, a do «Vossa Senhoria, dá licença, meu tenente?». Ainda hoje ficou como lição de moral: manda quem sabe obedecer. Mesmo na rebeldia. Obedecemos a um dever, o da consciência moral, como quem jura bandeira.