A terceira suplementar


O meu mundo de menino branco nascido em África tinha acabado quase sem começar. E a infância ilusória de filho de pais endinheirados. Agora tinha dezassete anos. Regressava de uma inesperada viagem a Angola, onde fui encontrar os escombros do que tinha sido uma vida promissora: agora a doença, as dívidas, o sem esperança haviam liquidado o que sobejava.
De lá saíra quando começaram em 1961 os massacres na Baixa de Cassanje, os nervos então desfeitos pelo medo e pelas insónias que a química médica não resolveu.
Por esmola arranjaram-me para poder embarcar para a Metrópole uma passagem no navio "Uíge", tão atulhado já de passageiros, que me albergaram num catre da "terceira suplementar", um caserna por cima dos porões. 
Voltava sozinho, em Setembro de 1966, porque a Faculdade ia abrir dentro de um mês e eu não conhecia ninguém em Lisboa. 
Antes de ter partido, nesse regresso brevíssimo às ruínas do que fora a minha infância, tínhamos vivido em Viseu, zona da minha paternidade. 
Agora tudo me era alheio. Faltava-me enfim tudo. Até um sorriso no rosto. 
O ensimesmamento começou aí, fruto daquela dignidade dos que não têm, honra dos que não querem perder o que são pelo que gostariam de ter sido.
Sou aquela figura do lado esquerdo da fotografia. Continuo a ser aquela figura do lado esquerdo da fotografia, mesmo quando o contentamento me anima o coração.