Cem anos de Faculdade, mil de memória


Lembrei-me disto que escrevo porque hoje o Wook trouxe-me a notícia da existência de dois volumes sobre o centenário da Faculdade de Direito de Lisboa.
Fui um sofrível aluno dessa Faculdade de Direito, a única então em Lisboa, uma das duas existentes, a outra a de Coimbra, com a qual aquela nutria uma nem sempre cordial rivalidade de que os próprios alunos sofriam, por vezes, os achaques e birras dos respectivos mestres.
Cheguei ali, vindo de Viseu, no Outono de 1966. Em rigor chegara vindo de Angola, onde o Céu nos caíra em cima esse Verão e para onde viajara de emergência para assistir ao descalabro do que fora. 
Eu era agora um menino pobre, a viver a penúria económica num mundo em que os falhos de recursos estudavam como alunos extraordinários, não frequentando as aulas e apresentando-se a exame final.
Não sei porque princípio mantive-me, porém, envolto nas maiores carências, a estudar como aluno ordinário e a complementar as idas à Faculdade com os trabalhos de ocasião que ia encontrando: uma empresa de trabalho temporário achou-me umas tarefas de dactilografia e trabalhos indiferenciadas que um dia, ao contar, darão para rir - ficando-me, já agora, com metade do ordenado - uma tia minha cedeu-me uma missão nocturna de dactilografia num laboratório de análises clínicas, onde me faziam companhia umas sorumbáticas rãs onde injectam urina de mulher, método então de saber se o dito fluído demonstrava ou não gravidez. E recolhi inquéritos pelo Bairro da Encarnação e Olivais. E cortei quilómetros de fita-cola para colar nas legendas no manual de voo do Boeing 707 que a TAP comprara e que estava a ser traduzido.
As idas para a Faculdade começavam pelas oito da manhã. Vinha no eléctrico operário, porque me permitia com um só bilhete fazer a viagem de ida e volta das Portas de Benfica até Sete Rios, vindo eu da Venda Nova. Depois, ia a pé, encosta acima até à Cidade Universitária, para poupar o bilhete do 31, que fazia o trajecto do Pote de Água, ou, mais tarde, o equívoco percurso da Picheleira à Buraca. 
Um dos primeiros a chegar à Faculdade era o Carlos Fino, com a sua pasta castanha, o ar composto e mais convencional deste mundo, mas imagino, ao que sei hoje, mal, já distribuindo os Avante! que o contínuo e porteiro, o Senhor Félix, recolhia com igual eficiência. 
Por essa altura os assistentes, com a rara excepção do Miguel Galvão Teles, não entravam pela porta da frente do edifício, como nós, sim pela lateral, reservada aos professores, que desaguava junto ao PBX servido pela D. Maria de Lurdes e pelo Senhor Costa. [E o que será feito deles, caramba, saudades!]
Ausente tanto quanto podia das aulas e nelas alheado, indiferente àquela mastigação legal, pela hora de almoço uma refeição custava oito escudos e eu nem sempre tinha oito escudos. Uma amiga minha, dada a fabulações poéticas, dir-me-ia mais tarde que na altura não me imaginaria, figura de Amadiz de Gaula, qual diáfano Galaaz, em algo tão prosaico como comer. E, na verdade, eu comia pouco mas por razões basto vulgares.
Guardo recordações vivas, muitas, tantas, desse tempo em que chegava a um mundo de adultos para um curso em que se envelhece depressa, a começar por dentro. Talvez não as deva esgotar aqui, porventura deva por agora ficar-me pela generalidade.
Seja como, for há duas realidades que gostaria de partilhar.
A primeira já ficou dita, acerca da minha mediocridade como aluno. Quando ali ensinei tive, enfim, que estudar para leccionar. E com afinco.
Lembro-me que, instalado precariamente ainda na entretanto extinta Pensão Universal, na Avenida Duque de Loulé, à espera que regressasse de África a minha Mãe, rebocando o que sobejara do meu Pai como criatura que, afinal, pouco conheci, sozinho com os meus dezassete anos, comprei um lápis daqueles que são ou eram metade azul e metade vermelhos e comecei a estudar, tentando compreender, as sebentas de História do Direito Romano, História do Direito Português, o Manual de Direito Constitucional e umas folhas avulsas de Introdução ao Estudo do Direito. 
Sem entusiasmo, alheio àquele mundo, estrangeiro exilado naquele território, riscava sem diferenciar o que era afinal importante saber para conhecer ou saber para passar.
O 11, 11, 10, 10, foi a justa valoração final que eu mereceria pelo desinteresse, pela compreensão infantil que ao findar do ano atingira de toda aquela sisuda matéria.
Creio que não nos entendíamos eu aquela casa que o Almada Negreiros ironizou com as gravuras que o seu traço magistral delineou para a fachada.
Ainda hoje me pergunto porque ensinaria aquela bondosa alma que foi o Professor João Castro Mendes Direito Romano de acordo com o paradigma sistemático da teoria geral da relação jurídica que os juristas alemães haviam inventado, decompondo o Direito, como se na mesa mortuária da sua morgue, nos elementos sujeito/objecto/facto/garantia que o velho Ulpiano, o Gaio, et alia nunca haviam sonhado possível nem como sistema nem como método ,e que nenhum Digesto, nenhumas Pandectas, jamais consagrariam.
Ainda hoje é para mim um mistério porque razão era ponto de honra saber-se de cor, nos exames finais feitos pelo Prof. Espinosa Gomes da Silva, a data da Lei da Boa Razão, incluindo o dia e o mês, quando eu só mais tarde vim a entender quanto ela é de importância na arremetida do Marquês de Pombal contra a discricionariedade judiciária do tempo e pelo triunfo do racionalismo contra a praxística romanista e canónica que ainda tentava imperar nos nossos pretórios.
Ainda hoje tento alcançar em que medida verdadeiramente aquelas folhas soltas vendidas na secretaria pelo Senhor Miranda - que debalde, mau grado promessas convincentes do Prof. Dias Marques, se converteriam alguma vez em prometido livro - me introduziriam, a mim pobre ignorante, o jurídico como forma de pensar e não como conceitos preparatórios do Direito Civil mais uma antecipação de um mundo ignoto e pouco prometedor de entusiasmos e aventuras, espécie de descrição gesticulada feita ao balcão de uma agência de viagens quanto a destinos de sonho de que o cliente desconfia nunca chegará a frequentar. E assim era a Introdução ao Estudo do Direito.
Enfim, lembro-me ter ficado extasiado com as preleções do Professor Marcelo Caetano sobre os sistema de Direito Constitucional, em que, saído do livro e como se dele levitando, nos levava, mau grado o seu rictus míope que nele era um sorriso - a expressão é do Artur Portela Filho no seu livro A Funda - para uma excursão aérea ao que não era a acanhada Constituição de 1933 ,plebiscitada até pelos mortos, e em que eu na altura não vi nem a mão de Fezas Vital como legislador, nem quanto ela significara o exílio de Rolão Preto ante o funeral, assim decretado, da Revolução Nacional, inumada no coval do Estado Novo.
A segunda nota que aqui fica tem a ver com a Associação de Estudantes, o seu bar, a mesa de ping-pong, os matraquilhos e mais tarde o policopiador a stencil para a impressão dos comunicados e os lê e passa. Fica para depois. Isso e o resto. Há sempre tempo para recordar o tempo.