O limiar da dor
Foi na Rua Vasco de Gama que nasci. Em casa, que era como se nascia. Hoje encontrei-me com esta notícia aqui, de Março deste ano de 2011: «no município sede, a Rua Vasco da Gama, a primeira desde que esta vila ascendeu a categoria de cidade há 79 anos, cortando a norte o bairro do Ritondo, há mais de 3 anos que está intransitável» (...) «Há tempos atrás foi a melhor rua de Malanje, mas não estão a ver nessa situação da rua, até o nome desapareceu. Isso já está há muito tempo, mais ou menos, praticamente 3 anos assim pessimamente».
Nunca mais voltei a Angola. Não mais voltarei a Angola. Tenho os meus avós maternos ali sepultados. Dizem que até a laje de mármore que tinha o nome deles gravado nas suas campas foi roubada. Prefiro guardar as recordações e dolorosas mas não ter de enfrentar mais dor. Há um limite para o que conseguimos sofrer.
Perguntei há dias como estava essa que é a cidade onde me deram o ser. «Bem», responderam-me, «está bem», que é a forma delicada de nos porem à porta, a nós e às nossas indesejadas preocupações.
Nasci ali. Como já disse, ao cimo da rua era a Quitanda, o mercado local, ao fundo, ao fundo, a caminho do bairro do Ritondo, a linha do caminho de ferro. A meio ficava a Casa Santos Pinto. Do lado de cá da rua era uma corrente de casas que a minha mãe ia comprando, velhas e a cair e arrendava, depois de as mandar reparar. Fazia-o com o dinheiro que amealhavam, o meu pai com o seu escritório de solicitador, ela trabalhando nele. Lembro-me disso com tanta nitidez como se tivesse sucedido agora neste local onde escrevo, o meu pai a entregar-lhe o que iam ganhando e a pedir-lhe, «Ernestina», alguns angolares, quando precisava.
Ficou-me aí, nesse modo simples e doméstico de ser, a ânsia por uma família. Éramos sozinhos e talvez fosse essa a nossa individualidade. Levei uma vida inteira perseguindo esse anseio. Hoje a minha rua já nem nome tem. E eu vivo numa casa e a devê-la ao banco.
[a foto é cortesia deste blog aqui]