Vidas desfolhadas, livros desfeitos
Não sei que livros havia em minha casa, mas havia muitos livros. Quando viajámos para a Metrópole, a minha mãe e eu, porque a guerra começara, e deixámos o meu pai para que, arrumada a vida, se juntasse a nós, e juntou-se sim para morrer, sei que venderem imensos desses livros, a esmo, ao melhor preço, a peso. Mesmo assim alguns vieram, restos amarelecidos de uma vida desfolhada, desirmanados, sem nexo. Foram-se as "Memórias de Trabalhos da Minha Vida" do general Norton de Matos, que depois vi em alfarrabistas a preço de ouro, a Pearl Buck, o Somerseth Maugham, o Pitigrili, tantos Joaquim Paço d'Arcos, tantos portugueses com quem me reencontraria na "Selecta Literária" do 6º e 7º ano do Liceu, os estudos etnográfico do Redinha. Não sei porque não trouxemos esses, pois que se encaixotaram os do Armando Ferreira e do Olavo d'Eça Leal, "A Tragédia Sexual de Leon Tolstoi", e "As riquezas dos Jesuítas".
Talvez tenha sido aí que começou esta parte da minha biografia que são bibliotecas abandonadas deixadas para trás de vidas desfeitas.
Hoje reencontro-me com o local onde me fizeram nascer em velhas livrarias e descubro que havia em Malanje quem escrevesse, mas eu era demasiado miúdo para me aperceber, como o Mena Abrantes no teatro, o Cerveira Baptista na poesia. Como se nunca tivessem existido, eles e eu.