A mão estendida
Se olhar em redor para as memórias que ficaram desse tempo adolescente em Viseu recordo como de conhecimento pessoal três nomes: o Eurico Dias, o Luís Miranda Rocha e a Isabel Santos. Tudo o mais esvaiu-se.
Sim, sei que existiam e que nos falávamos e talvez nos julgássemos amigos, tantos outros, no Colégio de Santo Agostinho, no Liceu Nacional. Mas aquela intimidade da presença, das horas usadas em conversa, daquele nada vagueante parecer o tudo que haveria para viver e sempre aquela ânsia que as paredes do nosso confinamento se alargassem a perseguir-nos, nunca se lhes estendeu a todos esses que se me lerem me julgarão ingrato e me condenarão como arrogante. Mas saibam que me defendo com a confissão da humilhação.
Se tentar perscrutar no tempo onde iniciou esse tempo de reclusão talvez o situe mais longe, na Malanje onde vivi até aos doze anos e onde deixei apenas dois nomes como rasto de presença.
Quantos amigos ou conhecidos entraram na minha casa? Os dedos de uma mão chegam para contar. Quantas vezes entrei eu na casa dessas pessoas? Talvez os dedos de ambas as mãos sobejem para o dizer.
Do Eurico Dias lembro-me dos longos passeios, a esmo, pelas ruas e vielas, atravessando de par em par a cidade, espraiando-nos até, como num jardim, pelo cemitério, indiferentes aos mortos, ele taciturno, eu a fazer as despesas da conversa.
Da Isabel Santos, os bailes domésticos em que, sob a vigilância dos pais, um grupo precário de adolescentes a borbulhar, ia afluindo, cada um trazendo a sua parte para a merenda, entre croquetes e bebidas gaseificadas, que o mais um gira-discos fazia, cumprindo a sua função, cada um em busca do seu possível par, ansiando o dançar agarrados o suficiente e suficientemente separados, a mão a travar o ímpeto do corpo, e depois o regresso a casa, a horas certas, os sentimentos confundidos pelas sensações.
Lembro, enfim, o Luís de Miranda Rocha. Mais velho que nós. Pela sua mão aprendi a ler, soube o que era a cultura. Seguia-o até junto do edifício da Biblioteca, onde parava, vinda de Lisboa, a camioneta da carreira, a que trazia os jornais de Lisboa. Com as poucas moedas que me tilintavam no bolso, porque nunca soube o que era uma mesada ou uma semanada, ou regularidades que tais, atrevia-me a comprar o Diário de Lisboa, uma vez por outra o República, aquele para ler nas entrelinhas, este por militância na sua breve prosa.
Um dia soube que tinha morrido. Prestei-lhe aqui a possível expressão do que lhe devo, tanto quanto as palavras o conseguem. Como no seu poema, «as palavras não existem para além da nossa voz». A sua companhia ensinou-me a estar só. Escreveu um comovido livro de poemas chamado O Corpo e o Muro. Dedicou-o a «M», um segredo do seu coração.
Lembro. Estendo a mão ao que poderia ter sido e na presença do vazio, lanço-a a tudo quanto puder ser. Viverei a vida por viver, vivendo-a!