Os despojos do dia
Não interessa que esta narrativa não respeite a cronologia, porque as nossas memórias são turbilhão de sentimentos sem outra ordem que não seja a do vinco que nos deixou na alma.
Para fazer o primeiro ano da Faculdade de Direito vim para Lisboa. Estava previsto que estudaria em Coimbra por vivermos em Viseu, mas a vida encarregou-se de nos surpreender.
Cheguei sozinho à "capital do Império". Ainda havia do Império a sonolência, ido o sonho, não chegada ainda a saudade após o pesadelo.
Hospedei-me na Pensão Universal, ali na Avenida Duque de Loulé, logo após a ponte que passa sobre a Rua de Santa Marta. Ali, porque tinha instruções para ali ficar, porque o meu Pai tinha ali ficado uma vez.
Só que não havia quarto para mim, estava tudo cheio. Improvisaram-me então dormida na sala de estar. Só podia deitar-me depois de já não haver hóspedes que ali quisessem ficar a olhar para a televisão. Nem sei se telefonei para Angola, onde a minha Mãe recolhia o que tinha ficado das nossas coisas e do que já só era o meu Pai, para dar conta desta circunstância, afinal uma pálida incomodidade na angústia financeira em que se tinha tornado a nossa vida.
Lembro que comprei, sim, o Manual de Direito Constitucional do professor Marcello Caetano e mais os fascículos da História do Direito Português, da História do Direito Romano e da Introdução ao Estudo do Direito. E um lápis daqueles que eram simultâneamente vermelho e azul.
E comecei a ler e a sublinhar, a vaga náusea de aquilo não ter a ver comigo. Tal como dormia depois de todos se terem ido deitar, a vida surgia-me como só passível de ser vida depois de todos a terem vivido, disponíveis, enfim os sobejos.Tinha dezassete anos numa Pátria estrangeira.