Lema e repto para a viagem


Talvez sejam estes momentos dramáticos já não para a pessoa ou a sua família, trágicos sim para a Humanidade de que somos partícula, aqueles em que o Homem dá consigo a pensar a pequenez do seu ser e, ante a extensão do tempo, o diminuto espaço que nele ocupou. E, sobretudo, aquele enorme fosso entre o que poderia ter sido e o que acabou por ser. E a radical diferença entre o modo como ele é visto e aquilo que supõe ter sido.

Por isso as autobiografias são apontamentos artificiais, desfocados, úteis talvez como complemento para o que outros possam ter visto, ou repositório daquilo de que o biografado foi mero espectador.

Isto para dizer que, salvo se a senilidade de um dia vier a dar em vaidade e esta em desproporção, jamais escreverei livro que seja sobre mim. Este espaço tornou-se, aos poucos, mero lugar de apontamentos dispersos de recordações do vivido e do sentido.

Hoje recordaste o que encontrámos numa aldeia pela Ericeira, lema e repto numa só frase: «Quando se navega sem destino, nenhum vento é favorável.»

Fica, pois, aqui, esse momento. Encontrado o destino, vai-se a nau aparelhando, não há escorbuto, contemporâneo seja, que impeça o "terra à vista!" nisso fixados o amor pela viagem.

O cais e a incerta viagem


Em 1966, depois de ter feito admissão à Faculdade fui de emergência a Angola. Um telegrama enviado a minha Mãe com o lacónico «seu marido muito mal» foi o alerta e o pré-aviso do Céu que nos cairia em cima.
Era Agosto. Em Outubro regressei ao Continente para não mais voltar ao local onde nasci.
Vim de barco, bilhete cedido por favor, o velho paquete atulhado. O único lugar então disponível, a 3ª classe [suplementar] improvisada por cima dos portões. O êxodo tomava então já conta de todos os meios de saída.
Quando o navio se afastou da amurada, os meus olhos, então focados nos meus pais, que acenavam do cais, nada mais viam. Eles ficariam para voltarem uns meses depois, eu tinha dezassete anos e lá vinha entregue à minha sorte.
De súbito dei conta de um espaço vazio entre o cais e o casco da embarcação. Tinha-se soltado a amarra, o mar separava então.
Alguém a bordo trazia uma máquina fotográfica. E ali fiquei, menino entre desconhecidos, olhando o indefinido e o incerto. Sou o que está esquerda da fotografia, como talvez não fosse necessário dizê-lo.

Empurrando o carro de tudo

Ao ter recomeçado várias vezes a partir quase de nada, também eu vivi a ilusão de repetir a fantasia de voltar a ter vinte anos, várias vezes vinte anos.
Os aniversários são também essa oportunidade para, anualmente, renovando a esperança, prometermos mutação de vida. E o primeiro de Janeiro, tal como o retorno das férias de Verão.
É erro, porque a mudança faz-se, assim se queira, em dia incerto e hora imprópria, porque a mudança irremediável é a que vem ao nosso encontro.
O ser humano adapta-se mesmo quando constrói, assim a Natureza. A arrogância da Humanidade gera a tragédia e ela aí está numa das suas manifestações. Outras vieram, mais surgirão. O Cosmos agrega-se por implosão.
Faço hoje 71 anos. Para as seguradoras, estou amortizado, para os serviços de saúde, sou um caso de risco. E no entanto continuo em frente, a cabeça volteando de iniciativas, o coração inflamado de sentimentos.
Estou em paz com os meus e sinto amizade à minha volta.
Por não se ir almoçar fora e chegarem-me os filhos pelo telefone, não tenho com isso pena por mim.
Vive-se uma tal dor de alma ante o que se passa que torna excessiva a alegria própria. 
O acaso permitiu-me chegar aqui. A vida ensinou-me que se empurra o carro de tudo, mesmo quando é pela estrada do nada. O perpétuo movimento é a vida a fazer-se, desfazendo-se.
Fico feliz e grato pela oportunidade de ainda estar. Seria injusto não agradecendo a quantos têm partilhado presença, sentimentos, ajuda.
Cantem, pois, as nossas almas!

Embaraço e gratidão


Meu Bastonário

Autoridades da família judiciária

Titulares de cargos na nossa Ordem

Magistrados, Colegas, meus amigos



Muito grato fico pela vossa presença, bem como pela presença dos que, não podendo estar, tiveram a gentileza de me manifestar apreço por este momento.

Permitam-me que refira a mensagem de felicitações do Senhor Presidente do Conselho Superior e Bastonário eleito, Professor Menezes Leitão, impossibilitado de estar presente e que por isso agradeço publicamente neste acto; cumprimento também à Senhora Presidente do Conselho Superior eleita, Dra. Paula Lourenço, aqui presente.



Sem saber bem como começar, excepção pois, ao falar de mim, à naturalidade dos improvisos de que fui sendo capaz, permitam-me que, neste momento solene, partilhe convosco sentimentos, primeiro o de embaraço, depois o de gratidão.

Embaraço, logo por me ser difícil compatibilizar a imagem contida que tenho de mim com a daquele ser que a distinção supõe: conheço-me o suficiente para não desconsiderar os muitos defeitos e as limitações.

Embaraço, sobretudo, ao saber quantos antes de mim, altíssimas figuras da vida pública, receberam este galardão.

Embaraço, enfim, pois quando da atribuição das últimas medalhas de ouro, aos Bastonários Augusto Lopes Cardoso, Osório de Castro e Júlio Castro Caldas, me coube o encargo de proferir a então devida oração laudatória.

E eis que, ao ter ido, no discurso da altura, ao encontro das razões que, no caso dos então galardoados, sobejamente justificavam a distinção, não encontro hoje forma de me rever nesse critério, e não quero magoar quem me achou agora digno de a eles me irmanar num mesmo sinal distintivo.

Há seguramente a fundamentar o decidido uma ideia de mim, a qual desconta amplamente a realidade da criatura, e só a amizade do João Vaz Rodrigues saberia reconstituir, com a arte que a literatura empresta, a partir do esboço da minha pessoa, aquela figura que aparenta aos vossos olhos ser a personagem merecedora de estar hoje aqui.

Uma só circunstância minora, entretanto, um tal pudor, e essa nasce de ter achado, entre os homenageados com a Medalha de Ouro, em 1998, o meu patrono efectivo na advocacia, o Dr. Francisco Salgado Zenha, a quem devo muito do que me tornei e quero aqui lembrar com saudade comovida.

No fundo, a valer o plano simbólico, é como se este seu estagiário, saído daquele escritório na Avenida 5 de Outubro, em Lisboa, há quarenta e seis anos, tivesse honrado o seu mestre, a ponto de vir hoje aqui receber a comenda que, afinal, a ele é uma vez mais devida.

Falei em sentimentos e um segundo sentimento é o de mais alargada gratidão.

Gratidão, primeiro, para quem me permitiu chegar aqui, logo cursando os cinco anos de Direito, que me deram os rudimentos para a profissão.

Afilhado de advogado, figura imponente nessa minha Malanje natal, pela presença e pela acção, o Dr. Terêncio Africano Lopes da Silva, vindo de uma distinta família cabo-verdiana, cresci à sombra diminuída de eu ser, naquela pequena cidade angolana, apenas o filho do solicitador.

Solicitador em cujo escritório folheei, garoto ainda e sem os compreender, os primeiros livros de Direito, que ainda hoje conservo, encadernados a pano na Tipografia da Missão Católica, todos os volumes do professor Alberto dos Reis, os formulários, a legislação ultramarina, eu sei lá o quê e que foram uma iniciação precoce ao que me esperaria.

Solicitador a trabalhar numa Malanje onde só de vez em quando apareciam juízes profissionais e a justiça se ia fazendo, com simplicidade e sem o tecnicismo que quantas vezes ensarilha o que a equidade exige.

Solicitador que construiu a sua profissão em sobreposição à aventura e como há particularidades que correm nas veias vindo dos que nos deram o ser.

Se aqui estivesses hoje, Pai, diria que também é tua esta medalha, forma de te retribuir o que já não foi possível dar-te. Morreste estava eu no penúltimo ano do curso que ansiavas ver-me completar.

Gratidão a minha falecida Mãe, sustentáculo que foi da família quando o infortúnio se abateu sobre a nossa casa e que para que eu pudesse continuar na Universidade, se confinou então a empregos humildes, mas ciosa de orgulho de cumprir um dever, esgotando-se pela causa a que se devotara, a do seu único filho.

Foi com ela a secretariar-me que abri o meu primeiro escritório na então vila de Sintra, na rua que desemboca no antigo tribunal, e onde dei os primeiros passos naquela comarca então entre o rural e o aristocrático.

Maria Ernestina, Mãe, vê tu como, abrindo caminho com as mãos, conseguimos chegar aqui.

Gratidão, enfim, ironia!, à polícia política do antigo regime, porquanto à saída da Faculdade era minha intenção abraçar a magistratura, mas foi a informação que zelosamente a mesma prestou ao ministério da justiça, entidade então competente para me nomear como “delegado interino do procurador da República na comarca da Graciosa”, que me barrou o caminho que pretendia, pois, mesmo aí, nesse remoto lugar açoreano, segundo um carimbo aposto no meu ingénuo requerimento, que talvez mais eu não merecesse, o indivíduo que era eu não dava «garantias de cooperar na realização dos fins superiores do Estado».

E eis-me, por mão policial, desterrado para o que se veio a revelar ser, afinal, o meu meio natural, a advocacia, entre o escritório do meu patrono, o Dr. Salgado Zenha e o seu colega, o Dr. Xencora Camotim, que com a gentileza principesca que o caracterizava, aceitou receber-me também.

Eu tinha então vinte e dois anos de ilusões.

Menino entre os doutores, fiz desta casa a minha casa, da sua Biblioteca forma de tentar estudar o Direito que me faltava para a profissão e sobretudo o local de convívio com quantos a habitavam aqui em permanência, os bibliotecários, Dona Emília Scarlatti, os Senhores Malta Jotta, Homem de Figueiredo, Joaquim Parra, os advogados, os magistrados que eram leitores e visita, a sala tornada local de tertúlia.

A Ordem era então um lugar onde as controvérsias se resolviam com familiar amizade.

Foi num pequeno gabinete contíguo, que o Bastonário Ângelo Almeida Ribeiro me perguntou se eu gostaria de ir a Paris – e como eu ansiava então conhecer Paris! – para aí representar os jovens advogados portugueses, na sessão solene da abertura do estágio do Barreau de Paris. No ano anterior fora o jovem Jorge Sampaio quem assegurara a representação.

Foi na mesma sala que me foi atribuído o prémio Alves de Sá, por uma minha apressada incursão pelo Direito das Sucessões, com um estudo sobre a partilha em vida no Código Civil com o qual me candidatara, misto amor pela teoria do Direito e vontade de ganhar os cinquenta contos com os quais, parco de meios, comprei a primeira mobília de casa a que poderia chamar minha, esperando não desiludir, com esta venalidade, o amável incentivo do relator do prémio o Bastonário Mário Raposo.

Foi naquele mesmo lugar que, em 1984, clandestinamente, ligámos um modem acústico – e haverá hoje quem sabe o que é essa peça de museu – à rede telefónica analógica para que possível fosse, pela primeira vez na História do país, fazer uma ligação à base de dados jurídicos do CREDOC belga e para espanto do salão à pinha e de entre todos não menos o do Bastonário António Osório de Castro, qual primeiro passo do Homem na Lua, fosse possível teclar e obter jurisprudência sobre o regime legal do divórcio.

Foi aqui que se reuniram os Bastonários que me confiaram lugar no Conselho Geral a que presidiram, Augusto Lopes Cardoso, Maria de Jesus Serra Lopes, o Presidente do Conselho Superior que tive a honra de servir, Alfredo Castanheira Neves, o meu antecessor na Presidência desse Conselho, Luís Laureano Santos, o meu sucessor Óscar Ferreira Gomes.

Olhando em volta a galeria de retratos dos que presidiram aos destinos da minha Ordem, como não recordar a sua amizade, bem como e para falar apenas dos mais antigos, a dos bastonários José Manuel Coelho Ribeiro, Júlio Castro Caldas, António Pires de Lima e todos já nos deixaram e com a sua partida um sentido nostálgico de saudade.

Foram eles, tão diversas personalidades, as figuras de referência que, com o seu exemplo, moldaram o meu ser, em momentos históricos tão diferentes e por vezes tão difíceis. Tê-los visto lutar pela advocacia e pelo Estado de Direito, fez-me sempre sentir, concordando ou dissentindo, que era a nossa luta pela causa comum.


Meu Bastonário

Se a Medalha de Ouro da Ordem dos Advogados é tributo a uma vida, atribuída a quem se encontra ainda em plena prática da advocacia, a isso acrescenta o especial de dever de não desonrar quem confiou, ao atribuí-la. É essa uma significativa responsabilidade e, confesso, pesa.

Advogado em prática individual, não me sinto isolado quando comparado com a tendência que, fruto dos tempos e das suas exigências, se está a generalizar, a da advocacia empresarial, da advocacia enquanto indústria, pois advogo como o faz um larguíssimo sector da profissão, e com todos me sinto unido, como pedestre da advocacia, no quotidiano dos tribunais.

Lamento, sim, profundamente a massificação e a penúria que isso trouxe aos meus colegas, o alastrar de sentimentos de incompreensão, de agressividade, a perda do espírito de corpo, fruto do assalariamento, da proletarização, das condições adversas, tudo quanto não se conseguiu debelar por estar também para além do que a Ordem, por si, será capaz.

Dizer hoje que tenho trabalho é quase um impudor face àqueles, e tantos são, que não o têm.

Advogado sem ter tido outra profissão, fiz da intervenção cívica, afinal, a advocacia da causa pública, tentando o que me foi possível.

Estudei Direito para tentar que outros o ensinassem e grato fico à vida por me ter proporcionado a oportunidade de ver singrar, contagiados pelo entusiasmo, figuras de tanto valor na vida jurídica.

Advogado em suma, tento que o Direito não esgote a vida e me seja possível, pela cultura, encontrar espaço que preencha a alma, pela amizade e pelo amor território onde permita que fale o meu coração.

Está aqui minha mulher, estão aqui os meus filhos. Permitam-me que seja para eles a última palavra. Acreditam eles, fruto da inocência que é amparo, que eu mereço o que a deliberação do Conselho Geral e a vossa presença me trazem neste dia feliz e muito mais! Tendo-lhes tirado tanto para dar à nossa profissão é justo que apareça hoje em família com este adereço para que compreendam que a confusão entre os dias e as noites, as horas doridas dos azares e do desespero não foram, afinal, em vão.

Termino.

Se a Medalha de Honra da Ordem dos Advogados tributa a «defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, identificando–se com os ideais da justiça, da defesa do acesso ao direito e da construção do Estado de direito», sim, tem sido essa a minha bandeira.

Mas a medalha, eu sei, premeia a acção e o mérito e, pensando nisso, recebo-a com acanhamento e, acreditem, promessa de melhorar.

Carlos Eugénio


Chegou, inesperada prenda de Natal. É a primeira vez que tenho uma sua fotografia. A imagem ocupa agora o espaço que na memória se reservava a uma cada vez mais longínqua distância, pois  a real recordação já se ensarilhava com o que era já só lembrança do que ouvia dizer em casa. 
Andou comigo ao colo e chamava "Madrinha" a minha Mãe. A sua mulher chamava-se Saudade, um dos mais bonitos nomes de mulher que me foi dado ouvir. 
Entre os remorsos que carrego, fruto de escolhas que não foram minhas e de rejeições que a vida gerou, este fica assim sublimado, restituindo-me a paz.
Chama-se Carlos Eugénio Pina do Amaral. Meu Pai chamava-se José Barreiros Pina do Amaral. Morreram ambos, o nosso Pai e este meu irmão. 
Mulato, filho de amores africanos, é, afinal, sangue do meu sangue, mesmo que as circunstâncias tenham separado aquilo que o acaso agora uniu.

70 anos, inevitavelmente !


Olhando para trás, aqui estão: 70 anos ! Perante essa inevitabilidade do calendário, que direi? 
Que vou passar o dia a trabalhar na profissão, e assim a semana toda, a tentar cumprir com os seus deveres e são pesados, sentindo-me reiteradamente aquém do que deveria ter aprontado, mas teimando sempre, fazendo listas, obsessivas e teimosas. Esperançosas, ansiosas de acertar.
Que tenho planos de escrita, exigentes, mas, juiz severo sobre quanto faço, tentarei seja a obra publicada melhor na substância e mais cuidada na forma do que a já surgida. E editarei, a haver quem leia.
Que tenho dos vinte anos a esperança solitária de me reinventar, contando com as próprias forças, tentando não sacrificar quem me ama. E ajudar no que puder e sejam gentis, poupando-me.
Que vivi, diverso e intenso e assim será, por ser nisso que me revejo, ainda se ansiando da quietude a tranquilidade. E, porque não, um intervalo para o banal, de vez em quando.
70 anos são evidência de que o caminho a percorrer já é infinitamente menor ante o já calcorreado, mas isso não aflige. Afligiria se, olhando para trás, encontrasse do vencido apenas as pegadas.
Que devo a alguns dos meus semelhantes gratidão, pois estiveram quando o acanhamento me refreou pedir ajuda, para com outros a dívida por honrar do mal que possa não ter reparado, sem rancor, porém, ante o infortúnio que me haja sido causado.
Aqui estão eles, 70 anos! Não haverá outros, mas existirá viver de cada ano, um a um, os seus meses, e destes, todos os dias, a toda a hora, remexidamente.
A vantagem dos números grandes, quando percebidos, é fazerem-nos alcançar a imensidão dos números pequeninos, nos quais está contida da vida a sua essência.

O filho do solicitador

Já disse várias vezes isto e com orgulho: sou filho de um solicitador. E foi assim que talvez tenha surgido a primeira semente  que me tornou advogado. Do escritório, que meu Pai abriu em Malanje, por alturas de 1947, ao casar com minha Mãe, salvaram-se livros de Direito, que são hoje companhia e memória: os formulários, a obra completa de Alberto dos Reis, à excepção do "Breve Estudo", as "Partilhas Judiciais" do Lopes Cardoso, o "Acto dos Notários" do Tavares de Carvalho, tanto mas não muito mais. Hoje encontrei-me com esta sua fotografia. Está nela a minha génese e assim o meu futuro.

Um editor confessa-se!


Terminou ontem no Porto uma parte da minha vida, a de editor.
Porque acrescentei esse modo de ser a outros, que já trazia comigo e eram aparências constitutivas de mim, se é que algo se reduz à soma das suas partes? Não sei. 
Comecei com O Mundo em Gavetas, etiqueta através da qual editei livros meus que, progressivamente, fui deixando de escrever. Um dia tudo isso se interrompeu, como se interrompera a razão que lhe dera vida.
Retomei com a Labirinto de Letras. Criada em 2009, teve um período de dormência e ressuscitou, acumulando livro após livro, um pequeno catálogo e a ideia de que poderia aventurar-se a mais. Nenhum autor teve de custear o que editei, suportei tudo quanto significa tornar um original num livro, revisão, grafismo, tipografia, sessões de apresentação, colocação em venda.
Sujeitei-me à percentagem que o mercado cobra, 60 a 65% do preço que o leitor paga na livraria, percentagem que o editor recebe em tempo a perder de vista, tendo de pagar a pronto todos os encargos da edição. Sacrifiquei os meus, gratuitamente, em trabalho que paguei apenas com envergonhada gratidão.
Fui somando sobras e prejuízos. Cento e cinquenta mil euros depois, centenas de sobras acumuladas, a insolvência da distribuidora, de que me socorri, ditou o fim da aventura, a impossibilidade de continuar.
Talvez fosse este, ao arrear taipais, o momento de fazer um balanço. Não o faço. Talvez eu pudesse ter encontrado uma saída, muitos subsistem neste ramo, por ventura porque profissionais. Talvez esta actividade editorial não fosse, na minha cada vez mais exigente vida, a menos apropriada à minha pessoa, ao que, por isso, dediquei mais ilusão do que paciência.
Não sei.
Os livros por aí ficam, nem sei o que lhes faça. Tenho-os oferecido agora aos autores. Outro dia, um editor amigo, animado, que dizia estar com o que conseguia, aludiu, porém, aos milhares de obras que ia mandar guilhotinar para encurtar despesa de armazém, onde se empilhavam, invendáveis. Dói o coração pensar nisso.
Uma palavra fica para os autores que confiaram; uma palavra, também, para os leitores que corresponderam. 
Amanhã, apresentarei um livro que editor amigo publicou. A ele prometi, e tenho-o quase escrito, um texto sobre Maria Ondina Braga. Hoje ao almoço entusiasmei-me ao falar nos livros que comecei a escrever. Ao começo da tarde, implorei mais tempo para o contributo que está jurado para uma colectânea para que me convidaram. Anteontem, trouxe para casa mais dois livros para ler. Junto-os aos tantos que povoam as estantes, que serpenteiam os meus espaços, esperança e longa e lúcida vida, desejo de tempo.
Não lamento porque falhei, lamentaria se não tivesse dado voz à ânsia de ter arriscado. A intenção foi honesta. Pensei que era possível e lutei por isso. 
Como última reflexão, neste momento de intimidade partilhada, o ridículo de tudo isto: poderia ter editado, e nisso esgotado energias, ao serviço de um credo, uma ideologia, os interesses de um grupo, uma tentativa de fazer triunfar, já nem digo uma ideologia, ao menos uma ideia, em nome que fosse de uma vaidade pessoal. Ridiculamente, não. Foi apenas para que outros tivessem voz. 
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Fonte da imagem: aqui

A cibernética e o Direito

No passado dia 25, dia do Advogado Europeu, a gentileza de ser sido convidado para intervir numa conferência sobre a advocacia digital, levou-me aos confins da memória. A imagem que encima este post é de uma comunicação que, era ainda estagiário, apresentei, em 1972, ao 1º Congresso dos Advogados Portugueses.
Tudo começara três anos anos antes. Eu tinha vinte anos. Era tempo de vadiagem pelos corredores da Faculdade de Direito, estudo apenas o necessário, no mais, errância, militância na Associação de Estudantes e fantasia. 
Um dia, na Biblioteca, lendo o que não tinha obrigatoriamente de ler caiu-me nas mãos um número da Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto. E nela um artigo de um professor de Milão, cujo nome era para mim desconhecido: Mario Losano. E um artigo seu sobre a Giuscibernetica.
Não sei com que rapidez lhe escrevi uma carta. E com que brevidade me respondeu e me enviou, gentilmente, o seu pequeno grande livro, intitulado Giuscibernetica, Macchine e modelli cibernetici nel Diritto

Devorei-o, sublinhando-o, apetecendo-me sublinhar tudo. Era para mim uma revelação. Tratava, sim, também da aplicação dos computadores ao Direito, o que já por si, nesse ano de 1969, era uma revelação. Mas a obra defrontava-se com outros territórios que eram tão interessantes quanto mobilizadores. Abria uma crítica à jurimetria, essa disciplina que, partindo do sistema dos precedentes judiciários como fonte de Direito, ensaiava uma previsão do comportamento judicial, pela extrapolação a partir de bases de dados formadas a partir de critérios expressos pelo tribunal em casos semelhantes.
Não se ficava, porém, por aí. Abria caminho, ao reflectir sobre a aproximação à lógica jurídica, a formal e a dialéctica e a partir daí a eventual algoritmização do pensamento jurídico, e o cálculo das proposições normativas.
Tudo isso, nesse tempo, fazia sentido.
Eu estava já, por outra via, embrenhado em tal território cultural. Graças ao amigo apoio de Luís Moniz Pereira, então estudante do Instituto Superior Técnico, havia sido acolhido num grupo que se intitulava Centro de Estudos de Cibernética, onde confluíam, sob a sua orientação e a de Luís Fernando Monteiro, em lógica multidisciplinar, contributos de vária índole. Lembro-lhe do Vítor Manuel de Oliveira Jorge, vindo da arqueologia, a Maria Helena Mira Mateus, do Centro de Estudos de Linguística Teórica. Tinha-me envolvido no estudos da Teoria Geral dos Sistemas e na Teoria da Comunicação. E tudo isso era como se um mundo só.
Lia então o absolutamente inesperado para a idade e, confesso, lamento profundamente que tudo isso seja hoje um passado irrecuperável.
Comecei pela obra de Norbert Wiener, profética porque de 1948, emocionado pela convergência em modelos isomórficos dos princípios de funcionamento dos vários sistemas, dos naturais, aos sociais, aos das máquinas criadas pelo homem.
Conceitos como retroalimentação, servo-mecanismos, a questão da entropia decorrente da segunda lei da termodinâmica, passaram a fazer parte das minha reflexões, enquanto mastigava o Direito ensinado pelo método positivista e hermenêutico que era assim que se usava na escola que eu frequentava. É que havia que passar nos exames.
Curiosamente, foi o seu opúsculo Deus, Golem e Companhia, que me impressionou, por ser um estudo sobre a questão teológica do Criador e da criatura, afinal, com dezenas de anos de avanço, a questão crucial da inteligência artificial. Enfrentando o problema, que von Neumann havia teorizado, a dos jogos de teoria perfeita - em que o jogador aprende sempre o melhor modo de vencer e, aplicando o método, ganha seguramente - Wiener prevenia: «os idólatras do mecânico têm a ilusão frequente de pensar que um mundo altamente automatizado exigiria menos do engenho humano do que o mundo actual e retiraria do homem a penosa necessidade de reflexão». E como isso fazia sentido e prevenia para ilusões que se tornariam funestas.
Rendido à fantasia do determinismo newtoniano, do mundo como um relógio suíço em que o Direito marcaria a hora certa, progredi pela tentativa - impossível ante a minha reduzida inteligência nesse sector - pelo cálculo de normas, e nomeadamente pela analogia possível entre os preceitos da lógica alética - em que se encontrava o necessário, o possível, o contingente e o impossível - e as da lógica deôntica - em que resultava o obrigatório, o permitido, o indiferente e o proibido, analogia que havia sido desenvolvida pelo pensamento do finlandês von Wright e pelo polaco Georges Kalinowski, com quem me cruzaria depois num colóquio em Palma de Maiorca em 1982. 
Foi aí que o matemático Miguel Sánchez-Mazas, filósofo e um introdutor da filosofia analítica da linguagem em Espanha me trouxe o pensamento de Leibnitz e com ele a redução dos conceitos a representações aritméticas. 
A minha ignorância matemática tornou a sua obra ilegível, mas não a apreensão do seu fundamento.
No fundo nela expunha-se a possibilidade de redução proposicional das asserções jurídicas a fórmulas que, sujeitas a cálculo, demonstrariam a sua racionalidade e, por isso, a sua congruência, evidenciando as que não fossem validadas por esta fórmula.
Personalidade arrebatada, o autor, que teria de se exilar fora de Espanha em 1956 e só voltaria ao seu País basco em 1982, teve a subida gentileza que me encorajar, com um autógrafo em que colocava a sua simplicidade, ele um génio em movimento, eu um atrevido aprendiz. 
Difícil será evitar a emoção com que recordo tudo isto e com que, em intervenção improvisada, relembrei todo esse meu passado, que as contingências de vida aniquilaram.
Talvez tivesse sido um erro, ter seguido por aquele caminho filosófico. Sinto-o hoje, ante o modo como vejo o Direito desenrolar-se, expresso pela retórica, servindo como resultado ante a melhor forma de argumentar, a "verità effetuale delle cose" a ser, tal como vi ser com inteligência ser expresso por Nicolau Maquiavel, afinal o critério de aferição do que se tem por legítimo e justo porque legal: certo e verdadeiro e por isso válido é, assim tantos pensam, o que se torna congruente com o efeito que se pretende: ou seja, trata-se de uma legitimação do apriori, a decisão prévia à sua fundamentação.
De tudo isto, e de tanto que poderia dizer aqui, ficam, como presença, os computadores que usei, processadores de texto, instrumentos de gestão, e hoje a máquina de computação universal. Sub-produtos, afinal, porque meros artefactos. 
Charles Babbage derreteu uma fortuna para tentar a sua construção. Trabalhando em Bletchley Park para os serviços secretos britânicos, para que fosse descodificado o tráfego de comunicações criptografadas da máquina alemã Enigma, Alan Turing contribuiu decisivamente para a construção do primeiro computador programável, o Colossus
Fundamentais como tecnologia, assim não fossem decisivas as ideias. Mesmo as que se revelam uma falsa partida.
Por isso aqui fica o que foi o meu primeiro: écran monocromático, disquetes de oito polegadas, moles, 128K de memória RAM. Foi o primeiro passo de uma longa viagem. Comprei-o em 1983. Nesse ano levei  cabo na Ordem dos Advogados um evento durante o qual se fez a primeira ligação, através de um modem acústico, a uma base de dados jurídicos, o CREDOC belga. O «AH!» de A surpresa de quantos encheram o Salão Nobre da Ordem ao verem, em resposta ao query,  as primeiras listagens de sentenças sobre o tema inquirido, no caso o divórcio, ainda hoje o guardo como uma das mais gratas recordações. Valeu a pena!





"A Partilha em Vida", um começo de vida.

Eu tinha então 23 anos. E frequentava, como casa minha, a Biblioteca da nossa Ordem. Havia sido aluno sofrível, mas, agora no estágio, conhecia outra dimensão do Direito, a humana, povoada de almas para quem ele era parte natural da sua vivência familiar.
Tudo vem hoje à memória e nela há, a pesar, uma dívida a pagar.
Eu tinha 23 anos e com eles vontade de iniciar vida, sem saber o que esta, adversa, me reservaria. Mas tinha a ilusão da esperança. Corria então o ano de 1972.
Nas minhas deambulações bibliotecárias, folheando, ao acaso, ia formando o meu conhecimento não das regras do Direito, mas das pessoas da Justiça, suas histórias.
Um dia, nem sei graças a que acaso, vivendo errático, soube que havia um prémio para o melhor estudo jurídico de quem a ele se candidatasse, instituído pelo Bastonário Barbosa de Magalhães.
Eu tinha 23 anos de atrevimento e com ele o arrojo de pensar que, qualquer que fosse o tema, não diria não a escrevê-lo e nem esmoreci quando soube estar então a concurso algo tão inesperado como “A partilha em vida no Código Civil”.
E tinha vontade impetuosa de iniciar vida, e irrompeu, assim, aquela nesga de oportunidade, porque o prémio, soube logo, acumulados o de dois anos, era de 50 contos e com isso conseguiria comprar os tarecos necessários a mobilar casa e ainda algum me sobraria.
Em suma, tudo reunia, acaso e a necessidade. Havia, porém, um senão: o prazo estava a terminar.
Foi com tais severas limitações, alguns meses apenas pela frente e um tema totalmente desconhecido, que me decidi.
A literatura portuguesa sobre a matéria era escassa, o instituto era novo, trazido para o Direito Civil Português através do Código de 1966, que tinha poucos anos ainda de vigência. Jurisprudência, que me lembre, pouca.
Havia que cavar no Direito estrangeiro e salvou-me o francês, onde me cruzei com uma figura conhecida como “partage d’ascendant”. E dali voguei pelo espanhol, onde havia regras curiosas sobre sucessões “especiais”, que tentavam evitar que o egoísmo rapace de herdeiros, junto ao igualitarismo que a legislação burguesa inaugurara, dissipasse a herdade e a fábrica, a universalidade que era sustentáculo do poder da velha família, mas também sustento meio de produção dos desprovidos que nela encontravam ganha pão.
Juntando o desconexo, antecipei o que seria depois curiosidade pelo morgadio, o sistema da propriedade e da herança vincular, sobre o qual tenho hoje – relíquia – a obra do famoso “Lobão”, de seu nome Manuel de Almeida e Sousa, nascido em 1877, que, querendo dedicar-se à Advocacia, fez na povoação de Alcouce, freguesia de Lobão da Beira, concelho de Tondela, residência e lugar de estágio com o Advogado Estanislau Lopes, este esquecido, aquele lendário gigante na História do Direito, imensa escrita: o Tratado Prático dos Morgados, editado em 1807.
Coube ao Dr. Mário Raposo ser relator do concurso. Amável, não poupou alguma severidade encorajadora para aquele ousado candidato em pétreo tema: “poucos juristas, sobretudo os da nova geração, sobreviveriam à sua inelutável aridez”, escreveu a 29 de março de 1974.
O Prémio Alves de Sá, eis o que eu almejava, tinha sido ganho, em anos anteriores, pelo prestigiado Advogado Humberto Pereira Diniz Lopes, militante de causas cívicas, várias vezes preso político, figura de referência no mundo da cultura.
Foi-me concedido numa sessão discreta no Gabinete do Bastonário Ângelo de Almeida Ribeiro.
Tentando, com timidez, explicar-me quanto à aventura que corria o risco de passar por alto empenhamento científico, terei balbuciado então que tinham sido 50 contos o vil móbil. Eu tinha 23 anos de ânsias de montar arraiais na Advocacia.
Ao ter apresentado, outro dia, o livro que a historiadora Maria João Figueiroa Rego escreveu sobre os Bastonários, ele ali estava, em gravura, enfim, o meu benfeitor: Alves de Sá. Nunca lhe agradeci o prémio. Aqui estou, mão no peito: obrigado, Colega e meu Amigo! Foi consigo que tudo começou.

[texto publicado no número deste mês do Boletim da Ordem dos Advogados]

Um tempo já sem espaço


Tinha cinquenta anos quando nasci. Eu era o menino dos seus olhos, filho único do casamento com minha Mãe. 
As vicissitudes da vida fizeram com que nos perdêssemos um do outro. Quando, adolescente, precisa vadele, estava ausente. Depois, ao entrar na Faculdade, regressou, sombra do que tinha sido, minado por uma doença imperscrutável que lhe seria fatal.
Ao morrer estava só, na cama do Hospital de São José. Minha Mãe e eu revezávamos-nos, para o visitar; coube ser meu o dia em que, ao chegar à enfermaria, a sua cama estava imaculadamente composta. O vazio fez-me compreender tudo, o olhar condoído do doente da cama ao lado, tudo aceitar. Vinte anos de juventude esvaíram-se naquele instante. 
Hesitei se deveria vir aqui deixar esta lembrança de presença, como se a fazê-lo regressar.
O que vivi fez perdoar. Todos os difíceis momentos que vivemos, solidão, melancolia, a penúria, tudo esquece, mesmo quando molda o ser e se torna parte daquilo em que nos tornamos.
Chamava-se José Barreiros Pina do Amaral, porque usava o nome em ordem inversa. Para mim, a segunda parte do nome, apelido do seu lado materno, já não passou. 
Oriundo  de Viseu, viveu em São Tomé, em Cabinda, em Luanda, enfim em Malanje. Em 1947 conheceu uma rapariga vinte cinco mais nova do que ele. Desse improvável encontro nasci eu para uma improvável vida. 
Homem de vida errática, vogou entre a aventura e o improviso. Escreveu crónicas no Diário de Luanda, no Angola Norte, foi um dos que fundou o Rádio Clube de Malanje. Nada sobeja do que ficou nos jornais, apenas uma pálida memória do que se perdeu pelas ondas hertzianas. Que importa isso, porém, tão precário, discutível. Foi solicitador. Menos memória ficou. Apenas os livros, que ainda guardo junto aos meus, todos sem saber que destino lhes resta, folhas envelhecidas de um tempo para o qual não haverá no futuro espaço sequer.

A Poesia e o sorriso: a todos um Bom Natal!


Neste espaço, que se tornou biográfico, nunca trouxe a presença de outros, salvo e de modo ténue, aqueles de onde provim e aqueles a quem dei o ser. Não que a vida seja feita de uma individualidade sem companhia, mas por terem os outros direito ao véu da discrição, recato da privacidade, respeito, afinal, ao não se desnudar a sua existência. 
Quando se aproximam estes finais de ano, à medida que se somam finais de ano, tanto menos sendo os finais de ano para viver, há em muitos a tentação do rememorar, remoendo mais as recordações penosas, menos intensas as expectativas risonhas. Tento que seja tudo ao contrário. 
A vida transacta permitiu que a vivesse pelas muitas formas em que pode ser sentida. Tenho ao lado do currículo de sucessos, que são o que, tornando a História ficção, se apresenta, por vezes como biografia, aquela galeria de falhanços e de insuficiências, lado penoso da personalidade, os comportamentos indevidos, defeitos mesmo de personalidade, o que fiz de mim. Não me eximo a admiti-lo, nem me comprazeria em contá-lo: não quero ter a vaidade de exibir à comiseração pública, nem as nódoas negras dos atropelos, nem as chagas sentimentais das desilusões, incluindo o mal que fiz e as dores que causei. E assim foi.
Vem isto a propósito de ser Natal, estar em paz e ter de um lar o sentimento e da família a essência da noção; e estar activo, capaz de reconstruir os muros do sonho que se desmoronaram e a edificar a fábrica de ideias de que tenho feito teimosamente projectos.
Estou grato, a todos quantos me permitiram ter sido o que afinal sou, e não máscara de aparências; grato também porque, vivificado, me é possível continuar, reinventando-me.
Sendo a felicidade horizonte, caminho, matinal, para ele, triste apenas por a tantos tal não ser também possível, pelo horror do mundo de miséria que sempre existiu, e por haver os que, nesse percurso escarpado, optam pela planície chã da superficialidade e se bastam pelo contentamento, ilusão barata da plenitude.
Sessenta e sete anos depois, idos os pais, sou quem está na fila de espera do corredor pelo qual se garante a reciclagem da vida. Sem tragédia, porém. Oxalá para alguma poeira longínqua deste espaço sideral a partícula ínfima que sou faça sentido, mesmo sendo a criação uma miraculosa probabilidade de acaso algures no tempo, o futuro o improvável passado dos que de nós virão.
Um dia fui, embaraçado e melancólico, apresentar um livro de um desconhecido, livro que não me tinha chegado sequer a tempo, livro de breves versos, apresentação inesperada. Sem o imaginar, nasceria porém, no incerto e contingente instante, a Poesia e o sorriso. Eis o que quero trazer para o dia em que se trocam acenos e lembranças. A todos, um Bom Natal.

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Na fotografia um pai e o seu menino, com dois meses e nove dias. No verso da envelhecida fotografia, minha Mãe, que nos fotografou, a velha Kodak de fole, escreveu, naquela caligrafia gótica que nela era esmero, a data para memória.

A Kitanda


Era, na reminiscência da minha infância, aqui a "Kitanda", nome indígena para mercado. Atravessando-a, chegava-se à Rua Vasco da Gama, onde nasci, onde vivi até que a guerra começou ali tão perto na Baixa de Cassanje. Não sei de quando data esta fotografia. Encontrei-a hoje. Mal reconheço o que vejo ante o que rememoro como era. 
Nunca voltes ao lugar onde foste feliz. Mesmo que não tenhas sido.

Uma folha e uma flor



Chego hoje, dia 25 de Março, aos 67 anos de idade. Nestas datas pensa-se no que se fez, no que se poderia ter feito, em tudo quanto a vida fez de nós. Poderia ser assim também. Mais importantes que certos dias são, porém, todos e cada um dos dias. 
Ida a ânsia de querermos reiteradamente ter vinte anos, essa angústia irrequieta de fingida juventude eterna a refazer-se, fica a tranquilidade do dia presente, a felicidade encontrada de ter com quem o partilhar. 
Houve anos em que, pelo raiar do dia, telefonava, a voz a alegrar-se, parabéns a quem era pequenino, o seu eterno menino. Hoje é, naquilo que me deu o ser, um ponto na memória ferida. A vida que recebi dei-a a três filhos. Encerrou-se assim o círculo de giz da renovação.
Estou feliz em casa e em paz comigo. Não me aflige o tempo que falta nem o espaço por habitar.
Esta noite, sendo duas e vinte da madrugada, cai uma folha na árvore nocturna do calendário, nasce uma flor no jardim da aurora que é viver.

Natal a todos, feliz Natal



Há um momento em que foram tantas as variantes de Natal que nos foram dadas viver que já nem sabemos qual a delas a mais sentida, a mais nostálgica, a mais fingida, a mais dorida, a mais em paz connosco e com o mundo pacificados. 
Além disso, há o mundo dos outros, aqueles que nem todos sentem, desde os que se profissionalmente se alegram para nos servir, aos que têm estampada no rosto a solidão de ninguém os ter procurado, vendedores do que sobejará, esperançadas criaturas para um companhia que não terão.
Tudo isso por vezes dói, ao pararmos e pensarmos nisso, e com a idade aumentam os que reservam desta época o ser o tempo das crianças, figuração cristã de um menino nascido de ventre pobre e de amor que nem unitivo foi.
Por outro lado, há em muitos o saber resistir, o encontrar em si a força generosa da dádiva, o tempo amável do sorriso, mesmo quando tudo em redor confina, a presença infrequente tornada necessária, o orçamento esgotado em inutilidades ornadas a laçarote, o esgotamento do próprio físico, a alma cansada, a cumprir o dever de obsequiar. 
Tentei lembrar-me hoje da mais antiga recordação de Natal. Terão estado connosco, em nossa casa, nessa hoje distante Malanje, os meus avós maternos? Não ficou na memória nada que o retenha. Resta, porém, desse anos de 1949, esta fotografia, ao mundo sorrisos, a inocente alegria ante um carrinho de plástico, quando tão pouco fazia tanto!
Natal a todos, feliz Natal.

Ecos da Colónia: meu avô Leonel


Gratidão a Filomena Bandeira, investigadora, que, nos trabalhos para a sua tese, descobriu as pegadas no meu Avô, Leonel Rebelo da Silva, pai de minha Mãe. Serralheiro mecânico, instruído com o Curso Industrial foi um auto-didacta.
Terminaria os seus dias em Angola, na Fazenda do Quissol, depois de ter trabalhado na Cotonang, em Malanje.
Em 1930 estava, porém, como Mestre de Mecânica na Colónia Correcional de Vila Fernando,  no Alentejo, destinada à ressocialização de menores [ver sobre ela, aqui]. Nesse ano escreveria para o jornal do estabelecimento, o "Ecos da Colónia", este artigo, de elogio à mecânica e à electricidade e ao empenhamento dos «rapazes» por estes sectores da técnica. 
Pressente-se o que seria o empenhamento que levou até ao fim e que passou ao seu único filho rapaz, que registou como Leonel também.

A ânsia de Absoluto



Há um tempo em que o tempo começa a escassear e em que pela primeira vez se nota que o dia tem apenas vinte e quatro horas e que a vida individual não é eterna e se repara que a força anímica, mesmo quando renovada pela esperança, já não tem aquela resistência com que se enfrentaram tantos embates. 
Mesmo para os que tentam sobreviver renascendo, há o limite do tempo e o confinamento do espaço.
Depois há aquelas opções que se tomam e que nos vinculam a uma vida, as decisões que só aparentemente foram livres porque, por causa delas, se tolheu a liberdade futura.
Ter-se escolhido uma profissão desgastante, física, mental e afectivamente, que nos consome horas em que o repouso já se exigia ou que poderiam ser aplicadas à cultura ou à recreação. Ter-se alocado ao longo da vida recursos de energia e meios até financeiros a situações que desmoronaram, amputando parte do edifício que se poderia ter construído. Terem-se assumido encargos para com pessoas, projectos, ideias, princípios morais, que obrigam a dar e tornar a dar, mesmo quando sem retorno, ainda que sem gratidão, até face ao insucesso do resultado razoável.
A somar a isto há o desejo de se ser feliz, num mundo envenenado de tragédias, rancores, invejas, mesquinhez acumulada.
Pior de tudo isto é ter-se a consciência dos limites, saber quão erróneo e vil se foi neste mundo, incompleto, irrealizado, aquém do sonho e ter de edificar com o pouco que havia e o menos ainda que sobrou.
Olhei hoje para os blogs em que me tenho desdobrado e que constam da lateral deste mesmo que, aos poucos, se tornou biográfico, talvez imprudentemente pessoal, que não aproveito para a hagiografia do meu ser nem para a diabolização do mundo que me foi dado viver. Terei seguramente de dar conta que há muito ao abandono.
Juntei, um a um, os livros de Irene Lisboa dediquei-lhe um espaço, sem que me tenha sido possível voltar a ele, as obras meio-lidas, eu, afinal, mais um de tantos que a esqueceram, tristeza de indiferença ante uma escrita triste. O mesmo se passou, menos expressivamente talvez mas com a mesma natureza, com a obra de Maria Ondina Braga, de quem guardo inúmeras aparas do que julguei poder vir a ser um livro sobre a sua biografia interior e porventura uma edição das suas obras completas. Pior ainda o que ocorreu com Dalila Lello Pereira da Costa, relativamente a cuja esplendorosa escrita extática, correspondeu um começo de reflexão que por ali ficou. E quanta possibilidade havia de ter prosseguido com Clarice Lispector e sua irmã Elisa, sobre cuja obra extractei mais do que citações, frases, por me ter detido com um detalhe, que relaxei, sobre o pensamento subjacente e a sensibilidade que ali se espraia, mesmo desde os tempos em que eram quase ignoradas como voltaram a sê-lo, Elisa então na totalidade.
Dir-se-à que a culpa é da dispersão que mandaria a prudência não tivesse esse modo plural de ser. Só que não haveria outra hipótese de eu ser outro. Nem há. 
Mas que fazer quando me doem esses astros mortos no ciberespaço, evidências da minha incapacidade até de manter promessas de continuidade?
Há, depois, a vertente cívica, parte determinante do que ditou a minha sorte, desde os tempos de juventude e que me levou a erráticos e errados caminhos, por vezes ambíguas opções, das quais pelo menos trago o único consolo, o de nunca me ter apropriado com vantagem ou benefício que daí decorresse. Mantive-a, confinada, num espaço chamado "A Revolta das Palavras», para que fosse o jornal de parede dessa ânsia transformadora do mundo que encontrei. Tenho hoje a convicção de que nada se alterou nem seria possível alterar pela opinião dispersa e marginalizada que por ali exprimo, sem partido ou grupo a que pertença de que seja voz ou opinião.
Poderia continuar, porque há os locais onde fica o que é a minha investigação intervalar sobre aquele ramo da História Contemporânea que é a guerra secreta, sobre a qual escrevi e tenciono escrever livros; e há onde o que se tornou profissão, o jurídico, tenta encontrar pretexto e modo de reflexão e informação sistematizada. E mais onde ficam notas de leitura, apontamentos de alfarrábio, até mesmo o meu empenhamento com a "filosofia portuguesa" e com os temas esotéricos. 
Tudo incerto, irregular, ao sabor das circunstâncias e dos humores.
Continuo Advogado, que é a minha profissão e relativamente à qual estou sujeito a ritos cruéis, de deveres e prazos e exigências de responsabilidade. Tornei-me editor na ânsia de ter um projecto livre com que contribua para a cultura pela edição de livros, mesmo quando mecenas desta arte de empobrecer e possa dar voz, que mal tenho dado, à minha própria voz. 
Pelo meio ficou a escrita, a dispersa e a organizada, a prometida, a de há tanto tempo incompleta, livros adiados, artigos que poderiam ter sido publicados.
Há um tempo em que a vida exige mais tempo.
Para quem não se guia pela agulha de marear do lucro ou do aplauso, mas pelo instinto e pressentimento, espécie de adivinhação de um mundo possível, torna-se mais difícil porque não há uma forma de encontrar a equação certa entre o que que foi e o que resta.
Hoje, Domingo, dia de reflexão, pergunto se não devo retirar-me da vida pública, onde não faço falta, manter-me na profissão, que se me torna necessária, e optar pelas grandes opções que possa satisfazer sem vergonha de atraso ou má consciência de incompletude; ou se, afinal, não deverei ser, tal como a vida é, isso mesmo, a errância e o acaso, irrompendo ao sabor da ocasião, do momento, da ilusão mesmo que seja. 
A ânsia de Absoluto gera o Fim da História, aprendi ontem à noite, num jantar amigo. Contente-se, pois, o Homem, com o relativo, fragmentário, possível mesmo quando apenas provável. E faça disso contentamento, seu e dos seus.



O meu menino


Tenho andado por aqui a escrever a esmo. Não são memórias porque tenho pudor e teria de omitir nem auto-biografia pois tenho o sentido do ridículo. São momentos, dispersos, desordenados no tempo, meus e dos meus. Aqui e além desenterro uma recordação, um velho papel, uma fotografia. E a propósito sigo em frente, contando o que me lembro e o que se me suscita. São lembranças e ficções que é assim que uma vida surge aos olhos dos outros mesmo quando contada pelo próprio.
Em muitas casas havia o livro de Samuel Maia, "O Meu Menino", «recomendado pelo Ministério da Educação Nacional» para os Cursos de Puericultura..
Pois ali estou eu, anotado nas folhas finais, com a cuidada caligrafia de meu pai. Nasci com 53 centímetros, pesando três quilos meio. No fim do primeiro mês já «distinguia os sons», reconhecia «o doce e o amargo». «Chora com lágrimas», sublinhou. Passei a dar gargalhadas ao quarto mês. Nessa altura já notavam: «Prefere estar sentado». 
Olhando hoje, com ternura de memória visitada, para tudo isto creio que está ali muito do que há de essencial na vida. Até quando, ao sexto mês, aquele meu pequeno eu «não engatinha».

A feliz e ansiosa angústia que é viver


Podem fazer-se balanços de vida em qualquer idade. Fazem-se por vezes quando surgem no devir do tempo números redondos, como cinquenta anos, pela ilusão de que se viveu metade do disponível mas pouquíssimos são os que chegam à centena de anos de sobrevivência.
Inicio esta madrugada sessenta e seis anos de vida. Não tenho nenhum balanço a fazer do tempo certo já vivido, sim um projecto para o incerto tempo que haverá para viver.
Quero ser feliz, felicidade que nasça do que me puder ainda oferecer de bom e daquilo que de melhor conseguir partilhar com todos os demais: a sensação de paz por haver quem encontre por mim razão para sorrir.
Quero, além disso, dar sentido à existência, unindo pontas soltas que foram ficando do que ensaiei sem terminar, quase me esgotando sempre com excertos apenas do que imaginei possível: o sentimento de completude por haver achado modo de me reconciliar, inteiro, com tudo quanto é e está e por onde me joguei em iniciativa e esperança.
Quero, enfim, preparar-me, com dignidade, para qualquer percalço que me tolha o passo, interrompendo-me ou suspendendo-me a possibilidade: a percepção da finitude e da precariedade, não me julgar mais do que um cruzamento de improváveis acasos em que a vida gerou vida para que a vida continuasse possível.
Poderia dizer que de mim ficaram três filhos: mas nunca um filho é a continuação de seus pais, sim um ser existente por si e em si. Somos a origem da sua existência não a continuação da mesma através deles.
Poderia julgar que as obras a que dei azo valem o esforço que custaram: mas houve sempre mais esforço do que resultado e o que valerem tais efeitos sejam outros a dizê-lo, a seu tempo, não eu porque ainda esgoto o remanescente tempo.
Assim, nada digo e nada julgo. Seguirei o caminho que tracei, mesmo que não seja pelas avenidas que são trajecto; todas as vezes que me perder, tentarei retomar o passo. Estou no caminho certo.
Lamento o sofrimento, a dor, a desilusão, aquilo em que me inutilizei. Mas o que é viver se não errar? Felicito as circunstâncias que me trouxeram o mal, tal como festejo as que me fizeram encontrar o bem. São a prova de que não fugi a entregar-me, mesmo sabendo o que era susceptível.
Inicio esta madrugada, afinal, com redobrado ânimo, a continuação do que me foi possível. Olho carinhosamente a vida, a feliz e ansiosa angústia que é viver. E sorrio, confiante e grato.

O tempo do esquecimento


Com a passagem do tempo e porque morreu tinha eu vinte anos, comecei a confundir o dia em que nasceu, 17, com o dia em nasceu minha Mãe, 7, ele em Janeiro ela em Outubro.
Durante toda uma vida dei como assente que tinha nascido em 1898 quando afinal nasceu em 1897.
Até hoje, julgando ser dia de aniversário, que os mortos comemoram-nos, mesmo que em silêncio, na nossa memória, afirmei que tinha nascido em Fundo de Vila quando, de facto, nasceu em Esmolfe.
Em Setembro de 1966 tirou este, que seria o seu último bilhete de identidade. Estava pobre, fisicamente arruinado, insolvente. Terminara com a profissão de solicitador o que não tem qualquer importância. 
Nessa precisa ocasião, com 17 anos, regressei à Metrópole, no "Niassa", com um bilhete de favor, na terceira classe (suplementar) por cima dos porões. Tínhamos ido a Malanje encontrá-lo, exausto, numa cama de hospital. Um telegrama chamara-nos «seu marido muito mal».
Matriculei-me então na Faculdade de Direito. Os colegas que fui encontrando não sonhavam a penúria, porque tornei o orgulho em fingimento. A todos os que conhecíamos de Angola voltámos as costas, envergonhados. Iniciou-se um novo ciclo nas nossas vidas.
Hoje pensei que era dia de o lembrar. Afinal chegou o tempo em que, por remorsos que tenha,  já me comecei a esquecer.
Chama-se José Barreiros Pina do Amaral. É meu Pai.