Meu Bastonário
Autoridades da família judiciária
Titulares de cargos na nossa Ordem
Magistrados, Colegas, meus amigos
Muito grato fico pela vossa presença, bem como pela presença dos que, não podendo estar, tiveram a gentileza de me manifestar apreço por este momento.
Permitam-me que refira a mensagem de felicitações do Senhor Presidente do Conselho Superior e Bastonário eleito, Professor Menezes Leitão, impossibilitado de estar presente e que por isso agradeço publicamente neste acto; cumprimento também à Senhora Presidente do Conselho Superior eleita, Dra. Paula Lourenço, aqui presente.
Sem saber bem como começar, excepção pois, ao falar de mim, à naturalidade dos improvisos de que fui sendo capaz, permitam-me que, neste momento solene, partilhe convosco sentimentos, primeiro o de embaraço, depois o de gratidão.
Embaraço, logo por me ser difícil compatibilizar a imagem contida que tenho de mim com a daquele ser que a distinção supõe: conheço-me o suficiente para não desconsiderar os muitos defeitos e as limitações.
Embaraço, sobretudo, ao saber quantos antes de mim, altíssimas figuras da vida pública, receberam este galardão.
Embaraço, enfim, pois quando da atribuição das últimas medalhas de ouro, aos Bastonários Augusto Lopes Cardoso, Osório de Castro e Júlio Castro Caldas, me coube o encargo de proferir a então devida oração laudatória.
E eis que, ao ter ido, no discurso da altura, ao encontro das razões que, no caso dos então galardoados, sobejamente justificavam a distinção, não encontro hoje forma de me rever nesse critério, e não quero magoar quem me achou agora digno de a eles me irmanar num mesmo sinal distintivo.
Há seguramente a fundamentar o decidido uma ideia de mim, a qual desconta amplamente a realidade da criatura, e só a amizade do João Vaz Rodrigues saberia reconstituir, com a arte que a literatura empresta, a partir do esboço da minha pessoa, aquela figura que aparenta aos vossos olhos ser a personagem merecedora de estar hoje aqui.
Uma só circunstância minora, entretanto, um tal pudor, e essa nasce de ter achado, entre os homenageados com a Medalha de Ouro, em 1998, o meu patrono efectivo na advocacia, o Dr. Francisco Salgado Zenha, a quem devo muito do que me tornei e quero aqui lembrar com saudade comovida.
No fundo, a valer o plano simbólico, é como se este seu estagiário, saído daquele escritório na Avenida 5 de Outubro, em Lisboa, há quarenta e seis anos, tivesse honrado o seu mestre, a ponto de vir hoje aqui receber a comenda que, afinal, a ele é uma vez mais devida.
Falei em sentimentos e um segundo sentimento é o de mais alargada gratidão.
Gratidão, primeiro, para quem me permitiu chegar aqui, logo cursando os cinco anos de Direito, que me deram os rudimentos para a profissão.
Afilhado de advogado, figura imponente nessa minha Malanje natal, pela presença e pela acção, o Dr. Terêncio Africano Lopes da Silva, vindo de uma distinta família cabo-verdiana, cresci à sombra diminuída de eu ser, naquela pequena cidade angolana, apenas o filho do solicitador.
Solicitador em cujo escritório folheei, garoto ainda e sem os compreender, os primeiros livros de Direito, que ainda hoje conservo, encadernados a pano na Tipografia da Missão Católica, todos os volumes do professor Alberto dos Reis, os formulários, a legislação ultramarina, eu sei lá o quê e que foram uma iniciação precoce ao que me esperaria.
Solicitador a trabalhar numa Malanje onde só de vez em quando apareciam juízes profissionais e a justiça se ia fazendo, com simplicidade e sem o tecnicismo que quantas vezes ensarilha o que a equidade exige.
Solicitador que construiu a sua profissão em sobreposição à aventura e como há particularidades que correm nas veias vindo dos que nos deram o ser.
Se aqui estivesses hoje, Pai, diria que também é tua esta medalha, forma de te retribuir o que já não foi possível dar-te. Morreste estava eu no penúltimo ano do curso que ansiavas ver-me completar.
Gratidão a minha falecida Mãe, sustentáculo que foi da família quando o infortúnio se abateu sobre a nossa casa e que para que eu pudesse continuar na Universidade, se confinou então a empregos humildes, mas ciosa de orgulho de cumprir um dever, esgotando-se pela causa a que se devotara, a do seu único filho.
Foi com ela a secretariar-me que abri o meu primeiro escritório na então vila de Sintra, na rua que desemboca no antigo tribunal, e onde dei os primeiros passos naquela comarca então entre o rural e o aristocrático.
Maria Ernestina, Mãe, vê tu como, abrindo caminho com as mãos, conseguimos chegar aqui.
Gratidão, enfim, ironia!, à polícia política do antigo regime, porquanto à saída da Faculdade era minha intenção abraçar a magistratura, mas foi a informação que zelosamente a mesma prestou ao ministério da justiça, entidade então competente para me nomear como “delegado interino do procurador da República na comarca da Graciosa”, que me barrou o caminho que pretendia, pois, mesmo aí, nesse remoto lugar açoreano, segundo um carimbo aposto no meu ingénuo requerimento, que talvez mais eu não merecesse, o indivíduo que era eu não dava «garantias de cooperar na realização dos fins superiores do Estado».
E eis-me, por mão policial, desterrado para o que se veio a revelar ser, afinal, o meu meio natural, a advocacia, entre o escritório do meu patrono, o Dr. Salgado Zenha e o seu colega, o Dr. Xencora Camotim, que com a gentileza principesca que o caracterizava, aceitou receber-me também.
Eu tinha então vinte e dois anos de ilusões.
Menino entre os doutores, fiz desta casa a minha casa, da sua Biblioteca forma de tentar estudar o Direito que me faltava para a profissão e sobretudo o local de convívio com quantos a habitavam aqui em permanência, os bibliotecários, Dona Emília Scarlatti, os Senhores Malta Jotta, Homem de Figueiredo, Joaquim Parra, os advogados, os magistrados que eram leitores e visita, a sala tornada local de tertúlia.
A Ordem era então um lugar onde as controvérsias se resolviam com familiar amizade.
Foi num pequeno gabinete contíguo, que o Bastonário Ângelo Almeida Ribeiro me perguntou se eu gostaria de ir a Paris – e como eu ansiava então conhecer Paris! – para aí representar os jovens advogados portugueses, na sessão solene da abertura do estágio do Barreau de Paris. No ano anterior fora o jovem Jorge Sampaio quem assegurara a representação.
Foi na mesma sala que me foi atribuído o prémio Alves de Sá, por uma minha apressada incursão pelo Direito das Sucessões, com um estudo sobre a partilha em vida no Código Civil com o qual me candidatara, misto amor pela teoria do Direito e vontade de ganhar os cinquenta contos com os quais, parco de meios, comprei a primeira mobília de casa a que poderia chamar minha, esperando não desiludir, com esta venalidade, o amável incentivo do relator do prémio o Bastonário Mário Raposo.
Foi naquele mesmo lugar que, em 1984, clandestinamente, ligámos um modem acústico – e haverá hoje quem sabe o que é essa peça de museu – à rede telefónica analógica para que possível fosse, pela primeira vez na História do país, fazer uma ligação à base de dados jurídicos do CREDOC belga e para espanto do salão à pinha e de entre todos não menos o do Bastonário António Osório de Castro, qual primeiro passo do Homem na Lua, fosse possível teclar e obter jurisprudência sobre o regime legal do divórcio.
Foi aqui que se reuniram os Bastonários que me confiaram lugar no Conselho Geral a que presidiram, Augusto Lopes Cardoso, Maria de Jesus Serra Lopes, o Presidente do Conselho Superior que tive a honra de servir, Alfredo Castanheira Neves, o meu antecessor na Presidência desse Conselho, Luís Laureano Santos, o meu sucessor Óscar Ferreira Gomes.
Olhando em volta a galeria de retratos dos que presidiram aos destinos da minha Ordem, como não recordar a sua amizade, bem como e para falar apenas dos mais antigos, a dos bastonários José Manuel Coelho Ribeiro, Júlio Castro Caldas, António Pires de Lima e todos já nos deixaram e com a sua partida um sentido nostálgico de saudade.
Foram eles, tão diversas personalidades, as figuras de referência que, com o seu exemplo, moldaram o meu ser, em momentos históricos tão diferentes e por vezes tão difíceis. Tê-los visto lutar pela advocacia e pelo Estado de Direito, fez-me sempre sentir, concordando ou dissentindo, que era a nossa luta pela causa comum.
Meu Bastonário
Se a Medalha de Ouro da Ordem dos Advogados é tributo a uma vida, atribuída a quem se encontra ainda em plena prática da advocacia, a isso acrescenta o especial de dever de não desonrar quem confiou, ao atribuí-la. É essa uma significativa responsabilidade e, confesso, pesa.
Advogado em prática individual, não me sinto isolado quando comparado com a tendência que, fruto dos tempos e das suas exigências, se está a generalizar, a da advocacia empresarial, da advocacia enquanto indústria, pois advogo como o faz um larguíssimo sector da profissão, e com todos me sinto unido, como pedestre da advocacia, no quotidiano dos tribunais.
Lamento, sim, profundamente a massificação e a penúria que isso trouxe aos meus colegas, o alastrar de sentimentos de incompreensão, de agressividade, a perda do espírito de corpo, fruto do assalariamento, da proletarização, das condições adversas, tudo quanto não se conseguiu debelar por estar também para além do que a Ordem, por si, será capaz.
Dizer hoje que tenho trabalho é quase um impudor face àqueles, e tantos são, que não o têm.
Advogado sem ter tido outra profissão, fiz da intervenção cívica, afinal, a advocacia da causa pública, tentando o que me foi possível.
Estudei Direito para tentar que outros o ensinassem e grato fico à vida por me ter proporcionado a oportunidade de ver singrar, contagiados pelo entusiasmo, figuras de tanto valor na vida jurídica.
Advogado em suma, tento que o Direito não esgote a vida e me seja possível, pela cultura, encontrar espaço que preencha a alma, pela amizade e pelo amor território onde permita que fale o meu coração.
Está aqui minha mulher, estão aqui os meus filhos. Permitam-me que seja para eles a última palavra. Acreditam eles, fruto da inocência que é amparo, que eu mereço o que a deliberação do Conselho Geral e a vossa presença me trazem neste dia feliz e muito mais! Tendo-lhes tirado tanto para dar à nossa profissão é justo que apareça hoje em família com este adereço para que compreendam que a confusão entre os dias e as noites, as horas doridas dos azares e do desespero não foram, afinal, em vão.
Termino.
Se a Medalha de Honra da Ordem dos Advogados tributa a «defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, identificando–se com os ideais da justiça, da defesa do acesso ao direito e da construção do Estado de direito», sim, tem sido essa a minha bandeira.
Mas a medalha, eu sei, premeia a acção e o mérito e, pensando nisso, recebo-a com acanhamento e, acreditem, promessa de melhorar.